quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Oração Eucarística IV



PE: O Senhor esteja convosco.




T: Ele está no meio de nós.




PE: Corações ao alto.




T: O nosso coração está em Deus.




PE: Demos graças ao Senhor, nosso Deus.




T: É nosso dever e nossa salvação.




PE: Na verdade, ó Pai, é nosso dever dar-vos graças, é nossa salvação dar-vos glória: só vós sois o Deus vivo e verdadeiro que existis antes de todo o tempo e permaneceis para sempre, habitando em luz inacessível. Mas, porque sois o Deus de bondade e a fonte da vida, fizestes todas as coisas para cobrir de bênçãos as vossas criaturas e a muitos alegrar com a vossa luz.




T: Alegrai-nos, ó Pai, com a vossa luz!




PE: Eis, pois, diante de vós todos os anjos que vos servem e glorificam sem cessar, contemplando a vossa glória. Com eles, também nós e, por nossa voz, tudo o que criastes celebramos o vosso nome, cantando (dizendo) a uma só voz:




T: Santo, santo, santo...




PE: Nós proclamamos a vossa grandeza, Pai santo, a sabedoria e o amor com que fizestes todas as coisas criastes o homem e a mulher à vossa imagem e lhes confiastes todo o universo, para que, servindo a vós, seu criador, dominassem toda criatura. E, quando pela desobediência perderam a vossa amizade, não os abandonastes ao poder da morte, mas a todos socorrestes com bondade, para que, ao procurar-vos, vos pudessem encontrar.




T: Socorrei, com bondade, os que vos buscam!




PE: E, ainda mais, oferecestes muitas vezes aliança aos homens e às mulheres e os instruístes pelos profetas na esperança da salvação. E de tal modo, Pai santo, amastes o mundo, que, chegada a plenitude dos tempos, nos enviastes vosso próprio Filho para ser o nosso salvador.




T: Por amor nos enviastes vosso Filho!




PE: Verdadeiro homem, concebido do Espírito Santo e nascido da virgem Maria, viveu em tudo a condição humana, menos o pecado; anunciou aos pobres a salvação, aos oprimidos, a liberdade, aos tristes, a alegria. E, para realizar o vosso plano de amor, entregou-se à morte e, ressuscitando dos mortos, venceu a morte e renovou vida.




T: Jesus Cristo deu-nos vida por sua morte!




PE: E, a fim de não mais vivermos para nós, mas para ele, que por nós morreu e ressuscitou, enviou de vós, ó Pai, o Espírito Santo, como primeiro dom aos vossos fiéis para santificar todas as coisas, levando à plenitude a sua obra.




T: Santificai-nos pelo dom do vosso Espírito!




PE: Por isso, nós vos pedimos que o mesmo Espírito Santo santifique estas oferendas, a fim de que se tornem o Corpo † e o Sangue Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, para celebrarmos este grande mistério que ele nos deixou em sinal da eterna aliança.




T: Santificai nossa oferenda pelo Espírito.




PE: Quando, pois, chegou a hora em que por vós, ó Pai, ia ser glorificado, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Enquanto ceavam, ele tomou o pão, deu graças, e o partiu e deu a seus discípulos, dizendo:

TOMAI, TODOS, E COMEI: ISTO É O MEU CORPO, QUE SERÁ ENTREGUE POR VÓS.

Do mesmo modo, ele tomou em suas mãos o cálice com vinho, deu graças novamente e o deu a seus discípulos, dizendo:

TOMAI, TODOS, E BEBEI: ESTE É O CÁLICE DO MEU SANGUE, O SANGUE DA NOVA E ETERNA ALIANÇA, QUE SERÁ DERRAMADO POR VÓS E POR TODOS,
PARA A REMISSÃO DOS PECADOS. FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM.

Eis o mistério da fé!




T: Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!




PE: Celebrando, agora, ó Pai, a memória da nossa redenção, anunciamos a morte de Cristo e sua descida entre os mortos, proclamamos a sua ressurreição e ascensão à vossa direita e, esperando a sua vinda gloriosa, nós vos oferecemos o seu corpo e Sangue, sacrifício do vosso agrado e salvação do mundo inteiro.




T: Recebei, ó Senhor, a nossa oferta!




PE: Olhai, com bondade, o sacrifício que destes à vossa Igreja e concedei aos que vamos participar do mesmo pão e do mesmo cálice que, reunidos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos em Cristo um sacrifício vivo para o louvor da vossa glória.




T: Fazei de nós um sacrifício de louvor!




PE: E agora, ó Pai, lembrai-vos de todos pelos quais vos oferecemos este sacrifício: o vosso servo o papa N., o nosso bispo N., os bispos do mundo inteiro, os presbíteros e todos os ministros, os fiéis que, em torno deste altar, vos oferecem este sacrifício, o povo que vos pertence e todos aqueles que vos procuram de coração sincero.




T: Lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos!




PE: Lembrai-vos também dos que morreram na paz do vosso Cristo e de todos os mortos, dos quais só vós conhecestes a fé.




T: A todos saciai com vossa glória!




PE: E a todos nós, vossos filhos e filhas, concedei, ó Pai de bondade, que, com a virgem Maria, mãe de Deus, com os apóstolos e todos os santos, possamos alcançar a herança eterna no vosso reino, onde, com todas as criaturas, libertas da corrupção do pecado e da morte, vos glorificaremos por Cristo, Senhor nosso.




T: Concedei-nos o convívio dos eleitos!




PE: Por ele dais ao mundo todo bem e toda graça.

Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre.




T: Amém!

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Reflexões Sobre o Símbolo - Thomas Merton



O VERDADEIRO SÍMBOLO

"Ao tratar do simbolismo, entramos em uma área onde a reflexão, a síntese e a contemplação são mais importantes do que a investigação, a análise e a ciência. Não se pode apreender um símbolo, a menos que sejamos capazes de despertar, no próprio ser, as ressonâncias espirituais que respondem ao símbolo não apenas como SINAL, mas como ‘sacramento’ e ‘presença’.

Não é preciso dizer que, quando aqui falamos de símbolo, estamos interessados apenas no sentido pleno e verdadeiro da palavra. Os meros símbolos convencionais, escolhidos mais ou menos arbitrariamente para representar alguma outra coisa, as imagens concretas que representam qualidades abstratas, não são símbolos no sentido mais elevado.


O verdadeiro símbolo não aponta meramente algum objeto oculto. Ele contém em si mesmo uma estrutura que, de alguma forma, nos torna conscientes da significação íntima da vida e da própria realidade. Um verdadeiro símbolo nos leva ao centro do círculo, não para outro ponto da circunferência. Um verdadeiro símbolo aponta para o próprio âmago de todo ser, não para um incidente no fluxo do vir a ser."





A VIVÊNCIA DO SÍMBOLO

"Deve-se, em parte, a perda do sentido do símbolo na sociedade científica e tecnológica a uma incapacidade de distinguir entre o SÍMBOLO e o SINAL INDICATIVO. A função do sinal é a comunicação e, antes de tudo, a comunicação de conhecimento factual ou prático. A função do símbolo não é a afirmação de fatos ou a transmissão de informação, nem mesmo a informação espiritual a respeito de verdades absolutas ou religiosamente reveladas. Um símbolo não ensina ou informa apenas. Nem explica.


É bem verdade que o conteúdo de um símbolo religioso é normalmente rico de verdade revelada ou espiritual. No entanto, a visão espiritual e a revelação não estão nos símbolos a fim de que alguém possa extraí-las do símbolo e estudá-las, ou delas se apropriar intelectualmente, isoladamente do próprio símbolo.

A verdade revelada torna-se concreta e existencialmente presente nos símbolos e é apreendida no símbolo e com ele mediante uma resposta viva do sujeito. Essa resposta desafia a análise exata e não pode ser descrita com precisão para alguém que não a vivencie autenticamente. A capacidade para tal experiência é desenvolvida por tradições espirituais vivas e pelo contato com um mestre espiritual, ou pelo menos com uma liturgia criativa e vital e uma doutrina tradicional."








IDENTIFICAÇÃO NÃO É IDENTIDADE!

"Quando se invoca o símbolo para COMUNICAR, ele necessariamente se restringe a transmitir o tipo de ideia ou informação mais trivial. O símbolo fica, então, reduzido à MARCA REGISTRADA ou à INSÍGNIA POLÍTICA, um mero sinal de identificação.

Identificação não é identidade. O 'carimbo de identificação' é realmente uma diminuição ou perda de identidade, uma submersão da identidade na classe generalizada. Os pseudo-símbolos do movimento de massa tornam-se sinais da pseudomística, na qual o o homem massificado perde o seu eu individual no vazio, realmente demoníaco, no pseudo-eu geral da sociedade de massa.


Os símbolos da sociedade de massa são pontos grosseiros e bárbaros de arregimentação para a emoção, para o fanatismo e para formas exaltadas de ódio disfarçado de indignação moral. Os símbolos da sociedade de massa são cifras na face de um vazio espiritual e moral."




MORTE DO SIMBOLISMO = MORTE DO HOMEM

"Visto que é pelo simbolismo que o homem está espiritual e conscientemente em contato com seu próprio eu mais profundo, com os outros homens e com Deus, tanto a 'morte de Deus' como a 'morte do homem' se devem ao fato de estar morto o simbolismo.

A morte do simbolismo é o símbolo mais eloquente e significativo de nossa vida cultural moderna. Como o homem não pode viver sem sinais do invisível, e como sua capacidade de apreender o visível e o invisível como uma unidade significativa depende da vitalidade criativa de seus símbolos, embora ele possa declarar não ter maior interesse por esse 'unir' (que é o sentido etimológico de 'símbolo'), o homem, não obstante, persistirá em criar símbolos, a despeito de si mesmo. Se eles não forem sinais vivos de integração criativa e de vida interior, tornar-se-ão sinais patogênicos, mórbidos e deteriorados de sua própria ruptura interior.


A solene vulgaridade, a natureza de fato, inconscientemente obscena e espiritualmente repulsiva de alguns 'símbolos' que ainda são considerados dignos de respeito pelas instituições e pelas massas (tanto no Ocidente capitalista como nos países socialistas) suscitou naturalmente o protesto total do artista moderno, que agora cria apenas antiarte e não-símbolo, ou então contempla, sem tremor e sem comentário, a suprema afronta espiritual dessas formas e presenças que o marketing e a afluência tornaram 'normais' e 'comuns' por toda parte."




"DEUS ESTÁ MORTO" = "O HOMEM ESTÁ MORTO"!

"A declaração de Nietzsche de que 'Deus está morto' é agora assumida, não sem seriedade, pelos profetas das tendências mais 'progressistas' da religião ocidental, que agora parece, em alguns lugares, ansiosa por provar sua sinceridade aos olhos de uma sociedade ímpia, por um ato de autodestruição espiritual.

Enquanto isso, artistas, poetas e outros, que se poderia supor terem alguma preocupação com a vida interior do homem, declaram que a razão pela qual Deus deixou de estar presente para o homem (portanto está 'morto') é que o homem deixou de estar presente para si mesmo e que, consequentemente, o verdadeiro significado da declaração 'Deus está morto' é realmente 'o HOMEM está morto'.


O fato óbvio da agitação material do homem e de seu frenesi exterior só serve para enfatizar essa falta de vida espiritual."



Fonte: Thomas Merton, "Amor e Vida", Martins Fontes 

S. João da Cruz - Cântico Espiritual. 1, 4

«[…] A intenção principal da alma
não consiste em pedir apenas
a devoção afectiva e sensível,
onde não é certo nem claro
possuir-se o Esposo,
mas, sobretudo,
pedir a presença e a visão clara da Sua essência,
da qual quer ter a certeza
e a consolação na outra vida.»



segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O Viridissima Virga - Santa Hildegarda



1. Oh verdíssimo rebento

Ave, brisa suave da oração dos santos


2. Que em seu tempo floresce todos os ramos

Ave, Ave, fostes de quem o calor do sol exalou
o perfume do bálsamo


3. Para em vós brotar a bela flor que a fragrância despertou

todas as especiarias secas em seu estupor


4. E todos eles apareceram em verdor


5. Donde os céus derramaram o orvalho sobre a relva

e toda a terra foi feita feliz

Porque seu ventre frutificou e teceu o ninho em que as aves do céu se aninham


6. E houve magnânima alegria para os homens que comeram deste fruto

Por isso, ó doce Virgem, nenhuma alegria te falta.


7. Estas coisas Eva rejeitou


8. Mas agora, nova Eva, louvas o Altíssimo


1. O viridissima virga,

ave, que in ventoso flabro sciscitationis

sanctorum prodisti.


2. Cum venit tempus quod tu floruisti in ramis tuis,

ave, ave fuit tibi, quia calor solis in te sudavit

sicut odor balsami.


3. Nam in te floruit

pulcher flos qui odorem dedit

omnibus aromatibus que arida erant.


4. Et illa apparuerunt omnia in viriditate plena.


5. Unde celi dederunt rorem super gramen

et omnis terra leta facta est,

quoniam viscera ipsius frumentum

protulerunt et quoniam volucres celi nidos

in ipsa habuerunt.


6. Deinde facta est esca hominibus

et gaudium magnum epulantium.

Unde, o suavis Virgo, in te non deficit ullum gaudium.


7. Hec omnia Eva contempsit.


8. Nunc autem laus sit Altissimo.







quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Sou Vossa - Santa Teresa de Jesus



Vossa sou, para Vós nasci,
Que quereis fazer de mim?
Soberana Majestade,
Eterna Sabedoria,
Bondade tão boa para a minha alma,
Vós, Deus, Alteza, Ser Único, Bondade,
Olhai para a minha baixeza,
Para mim que hoje Vos canto o meu amor.
Que quereis fazer de mim?
Vossa sou, pois me criastes,
Vossa, pois me resgatastes,
Vossa, pois me suportais,
Vossa, pois me chamastes,
Vossa, pois me esperais,
Vossa pois não estou perdida,
Que quereis fazer de mim?
Que quereis então,
Senhor tão bom,
que faça tão vil servidor?
Que missão destes a este escravo pecador?
Eis-me aqui, meu doce amor,
Meu doce amor, eis-me aqui.
Que quereis fazer de mim?
Eis o meu coração,
que coloco em Vossas mãos,
com o meu corpo, minha vida, minha alma,
minhas entranhas e todo o meu amor.
Doce Esposo, meu Redentor,
para ser Vossa, me ofereci,
que quereis fazer de mim?
Dai-me a morte, dai-me a vida,
a saúde ou a doença
dai-me honra ou desonra
a guerra, ou a maior paz,
a fraqueza ou a paz plena,
a tudo isso, digo sim:
Que quereis fazer de mim?
Vossa sou, para Vós nasci,
Que quereis fazer de mim?


terça-feira, 19 de julho de 2016

Santa Teresa de Jesus | 1515 – 1582 Conceitos do Amor de Deus 4,4


«Quando este Esposo riquíssimo
mais quer enriquecer e regalar uma alma,
converte-a tanto em Si que,
como uma pessoa que desmaia
com grande prazer e contento,
lhe parece que se fica suspensa
naqueles divinos braços
e arrimada àquele sagrado lado
e àquele peito divino».


terça-feira, 28 de junho de 2016

A glória de Deus é o homem vivo; e a vida do homem é a visão de Deus - Santo Irineu de Lião



O esplendor de Deus dá a vida. Consequentemente, os que veem a Deus recebem a vida. Por isso, aquele que é inacessível, incompreensível e invisível, torna-se compreensível e acessível para os homens, a fim de dar a vida aos que o alcançam e veem. Assim como viver sem a vida é impossível, sem a participação de Deus não há vida. Participar de Deus consiste em vê-lo e gozar da sua bondade. Por conseguinte, os homens hão de ver a Deus para poderem viver. Por esta visão tornam-se imortais e se elevam até ele. Como já disse, estas coisas foram anunciadas pelos profetas de modo figurado: que Deus seria visto pelos homens que possuem seu Espírito e aguardam sem cessar sua vinda. Assim também diz Moisés no Deuteronômio: Nesse dia veremos que Deus pode falar ao homem, sem que este deixe de viver (cf. Dt 5,24).

Deus, que realiza tudo em todos, é inacessível e inefável, quanto ao seu poder e à sua grandeza, para os seres por ele criados. Mas não é de modo algum desconhecido, pois todos sabemos, por meio do seu Verbo, que há um só Deus Pai que contém todas as coisas e dá existência a todas elas, como está escrito no Evangelho: A Deus, ninguém jamais viu. Mas o Unigênito de Deus, que está na intimidade do Pai, ele no-lo deu a conhecer (Jo 1,18).

Portanto, quem desde o princípio nos dá a conhecer o Pai é o Filho, que desde o princípio está com o Pai.As visões proféticas, a diversidade de carismas, os ministérios, a glorificação do Pai, tudo isto, como uma sinfonia bem composta e harmoniosa, ele manifestou aos homens, no tempo próprio, para seu proveito. Porque onde há composição, há harmonia; onde há harmonia, tudo acontece no tempo próprio; e quando tudo acontece no tempo próprio, há proveito.

Por esta razão, o Verbo se tornou o administrador da graça do Pai para proveito dos homens. Em favor deles, pôs em prática o seu plano: mostrar Deus ao homem e apresentar o homem a Deus. No entanto, conservou a invisibilidade do Pai: desta forma o homem não desprezaria a Deus e seria sempre estimulado a progredir. Ao mesmo tempo, mostrou também, por diversos modos, que Deus é visível aos homens, para não acontecer que, privado totalmente de Deus, o homem chegasse a perder a própria existência. Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus. Com efeito, se a manifestação de Deus, através da criação dá a vida a todos os seres da terra, muito mais a manifestação do Pai, por meio do Verbo, dá a vida a todos os que veem a Deus.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Santo Efrém, o Sírio


PAPA BENTO XVI

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 28 de Novembro de 2007


Queridos irmãos e irmãs!

Segundo a opinião comum de hoje, o cristianismo seria uma religião europeia, que teria exportado depois a cultura deste Continente para outros Países. Mas a realidade é muito mais complexa, porque a raiz da religião cristã se encontra no Antigo Testamento e portanto em Jerusalém e no mundo semítico. O cristianismo alimenta-se sempre desta raiz do Antigo Testamento. Também a sua expansão nos primeiros séculos se verificou quer a Ocidente no mundo greco-latino, onde inspirou depois a cultura europeia quer a Oriente, até à Pérsia, à Índia, contribuindo assim para suscitar uma cultura específica, em línguas semíticas, com uma identidade própria. Para mostrar esta pluriformidade da única fé cristã dos inícios, na catequese de quarta-feira passada falei de um representante deste outro cristianismo, Afrates, o sábio persa, por nós quase desconhecido. Na mesma linha desejaria falar hoje sobre Santo Efrém, nascido em Nisibi por volta de 306 numa família cristã. Ele foi o mais importante representante do cristianismo de língua síria e conseguiu conciliar de modo único a vocação do teólogo com a do poeta. Formou-se e cresceu ao lado de Tiago, Bispo de Nisibi (303-338), e juntamente com ele fundou a escola teológica da sua cidade. Ordenado diácono, viveu intensamente a vida da comunidade cristã local até 363, ano em que em Nisibi caiu nas mãos dos Persas. Efrém então emigrou para Edessa, onde prosseguiu a sua actividade de pregador. Faleceu nesta cidade no ano de 373, vítima do contágio contraído no cuidado dos doentes de peste. Não se tem a certeza se era monge, mas contudo é certo que permaneceu diácono toda a sua vida e abraçou a virgindade e a pobreza. Assim se mostra na especificidade da sua expressão cultural a comum e fundamental identidade cristã: a fé, a esperança esta esperança que permite viver pobre e casto neste mundo, pondo todas as expectativas no Senhor e por fim a caridade, até ao dom de si mesmo na cura dos doentes de peste.

Santo Efrém deixou-nos uma grande herança teológica: a sua considerável produção pode reunir-se em quatro categorias: obras escritas em prosa ordinária (as suas obras polémicas, ou os comentários bíblicos); obras em prosa poética; homilias em versos; por fim os hinos, certamente a obra mais ampla de Efrém. Ele é um autor rico e interessante sob muitos aspectos, mas sobretudo sob o perfil teológico. A especificidade do seu trabalho é que nele teologia e poesia se encontram. Querendo aproximar-nos da doutrina, devemos insistir desde o início sobre este aspecto: isto é, o facto de que ele faz teologia de forma poética. A poesia permite-lhe aprofundar a reflexão teológica através de paradoxos e imagens. Ao mesmo tempo a sua teologia torna-se liturgia, torna-se música: de facto, ele era um grande compositor, um músico. Teologia, reflexão sobre a fé, poesia, canto e louvor a Deus caminham juntos; e é precisamente neste carácter litúrgico que na teologia de Efrém sobressai nitidamente a verdade divina. Na sua busca de Deus, no seu fazer teologia, ele segue o caminho do paradoxo e do símbolo. As imagens contrapostas são por ele amplamente privilegiadas, porque lhe servem para ressaltar o mistério de Deus.

Não posso agora apresentar muito acerca dele, também porque a poesia dificilmente se pode traduzir, mas para dar pelo menos uma ideia gostaria de citar uma parte de dois hinos. Antes de tudo, também em vista do próximo Advento, proponho-vos algumas maravilhosas imagens tiradas dos hinos Sobre a Natividade de Cristo.Diante da Virgem, Efrém manifesta com tonalidade inspirada a sua estupefacção:

"O Senhor vem a ela / para se fazer servo. / O verbo veio a ela / para descer no seu seio. / O relâmpago veio a ela / para não fazer barulho algum. / O pastor veio a ela / e eis o Anjo nascido, que humildemente chora. / Dado que o seio de Maria / inverteu os papéis:

Aquele que criou todas as coisas / entrou em sua posse, mas pobre. / O Altíssimo veio a ela (Maria), / mas entrou humilde. / O esplendor veio a ela, / mas revestido de humildes vestes. / Aquele que prodigaliza todas as coisas / conheceu a fome. / Aquele que dessedenta todos / conheceu a sede. / Nu e despojado saiu dela, ele que reveste (de beleza) todas as coisas".

(Hino "De Nativitate" 11, 6-8).

Para expressar o mistério de Cristo Efrém usa uma grande diversidade de temas, de expressões, de imagens. Num dos seus hinos, ele relaciona de modo eficaz Adão (no paraíso) com Cristo (na Eucaristia): "Foi fechando / com a espada do querubim, / que fechou o caminho da árvore da vida. / Mas para os povos, / o Senhor desta árvore / deu-se como alimento / ele mesmo na oblação (eucarística). / As árvores do Éden / foram dadas como alimento / à primazia de Adão. / Para nós, o jardineiro / do Jardim em pessoa / fez-se alimento / para as nossas almas. / De facto, todos tínhamos saído / do Paraíso juntamente com Adão, / que o deixou para trs. / Agora que a espada foi tirada / lá (na cruz)da lança / nós podemos ali voltar".

(Hino 49, 9-11).

Para falar da Eucaristia Efrém serve-se de duas imagens: as brasas e o carvão ardente, e a pérola. O tema das brasas é tomado pelo profeta Isaías (cf. 6, 6). É a imagem do serafim que, com as pinças, pega nas brasas, e simplesmente toca de modo leve os lábios do profeta para os purificar; o cristão, ao contrário, toca levemente e consome a Brasa, que é o próprio Cristo:

"No teu pão esconde-se o Espírito / que não pode ser consumado; / no teu vinho há o fogo que não se pode beber. / O Espírito no teu pão, o fogo no teu vinho: / eis uma maravilha acolhida pelos nossos lábios. / O serafim não podia aproximar os seus dedos da brasa, / que foi aproximada apenas pelos lábios de Isaías; / nem os dedos lhe pegaram, nem os lábios a engoliram; / mas o Senhor concedeu-nos fazer as duas coisas. / O fogo desceu com ira para destruir os pecadores, / mas o fogo da graça desce sobre o pão e nele permanece. / Em vez do fogo que destruiu o homem, / comemos o fogo no pão / e fomos vivificados".

(Hino "De Fide" 10, 8-10).

E ainda um último exemplo dos hinos de Santo Efrém, onde fala da pérola como símbolo da riqueza e da beleza da fé:

"Coloquei (a pérola), meus irmãos, na palma da mão, / para a poder examinar. / Observei-a de uma parte e da outra: / tinha um só aspecto nos dois lados. / (Assim) é a busca do Filho, imperscrutável, / porque ela é toda luz. / Na sua nitidez eu vi o Nítido, / que não se torna opaco; / e na sua pureza, / o símbolo grande do corpo de nosso Senhor, / que é puro. / Na sua indivisibilidade, vi a verdade, / que é indivisível".

(Hino "Sobre a Pérola" 1, 2-3).

A figura de Efrém ainda é plenamente actual para a vida das várias Igrejas cristãs. Descobrimo-lo em primeiro lugar como teólogo, que a partir da Sagrada Escritura reflecte poeticamente sobre o mistério da redenção do homem realizada por Cristo, Verbo de Deus encarnado. A sua é uma reflexão teológica expressa com imagens e símbolos tirados da natureza, da vida quotidiana e da Bíblia. À poesia e aos hinos para a liturgia, Efrém confere um carácter didáctico e catequético; trata-se de hinos teológicos e ao mesmo tempo adequados para a recitação ou o cântico litúrgico. Efrém serve-se destes hinos para difundir, por ocasião das festas litúrgicas, a doutrina da Igreja. Com o tempo eles revelaram-se um meio catequético extremamente eficaz para a comunidade cristã.

É importante a reflexão de Efrém sobre o tema de Deus criador: na criação nada está isolado, e o mundo é, ao lado da Sagrada Escritura, uma Bíblia de Deus. Usando de modo errado a sua liberdade, o homem inverte a ordem da criação. Para Efrém é relevante o papel da mulher. O modo em que ele fala dela é sempre inspirado na sensibilidade e no respeito: a habitação de Jesus no seio de Maria elevou em grande medida a dignidade da mulher. Para Efrém, assim como não há Redenção sem Jesus, também não há Encarnação sem Maria. As dimensões divina e humana do mistério da nossa redenção encontram-se já nos textos de Efrém; de modo poético e com imagens fundamentalmente escrituristas, ele antecipa o quadro teológico e de certo modo a própria linguagem das grandes definições dos Concílios do século V.

Efrém, honrado pela tradição cristã com o título de "cítara do Espírito Santo", permaneceu diácono da sua Igreja toda a vida. Foi uma escolha decisiva e emblemática: ele foi diácono, isto é, servo, quer no ministério litúrgico, quer, mais radicalmente, no amor a Cristo, por ele cantado de modo inigualável, quer por fim na caridade para com os irmãos, que introduziu com rara mestria no conhecimento da divina Revelação.




«A Esperança da Vida Nova em Cristo»

Dos Sermãos de Santo Efrém
(Sermo 3, De fine et admonitione 2. 4-5: 
Opera, edição Lamy 3, 216-222)

Afugenta, Senhor, com a luz diurna de tua sabedoria,
as trevas noturnas de nossa mente,
para que, iluminados por Ti,
te sirvamos com espírito renovado e puro.
A chegada do sol representa para os mortais
o início de seu trabalho;
Adorne, Senhor, em nossas almas uma mansão
em que possa continuar aquele dia
que não conhece o ocaso.
Faze que saibamos contemplar em nós mesmos
a vida da ressurreição,
e que nada possa separa nossas mentes
de teus deleites.
Imprime em nós, Senhor, 
por nossa constante adesão a Ti, 
o selo daquele dia
que não depende do movimento solar.
Cada dia te estreitamos em nossos braços
e te recebemos em nosso corpo
por meio de teus sacramentos;
Faze que sejamos dignos de experimentar em nossa pessoa,
a ressurreição que esperamos.
Pela graça do batismo
trazemos escondido em nosso corpo
o tesouro que tu nos deste;
que este mesmo tesouro
vá crescendo na mesa dos teus sacramentos;
faze que nos alegremos de teus dons.
Temos em nós, Senhor, o teu memorial, 
recebido de tua mesa espiritual;
dá-nos que alcancemos sua realidade plena, 
na renovação futura.
Pedimos-te, Senhor, 
que aquela beleza espiritual
que tua vontade imortal faz brotar 
na mesma mortalidade
nos faça compreender nossa própria beleza.
Tua crucifixão, ó Salvador Nosso,
foi o término de tua vida mortal;
faz que crucifiquemos nossa mente
a fim de obter a vida espiritual.
Que tua ressurreição, ó Jesus, 
faça crescer em nós o homem espiritual;
que a visão de teus sinais sacramentais,
nos ajude ajude a conhecê-la.
Tuas disposições divinas, ó Salvador Nosso,
são figura do mundo espiritual
faze que nos movamos nele,
como homens espirituais.
Não prives, Senhor, a nossa mente
de tua manifestação espiritual,
e não separe de nós 
o calor de tua suavidade
A mortalidade latente em nosso corpo
derrama em nós a corrupção;
que a aspersão de teu amor espiritual
apague em nossos corações 
os efeitos da mortalidade.
Concede-nos, Senhor, que caminhemos com presteza 
para a nossa pátria definitiva 
e que, como Moisés, do cume do monte, 
possamos desde agora contemplá-la pela fé.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Spiritus Sanctus - Santa Hildegarda

Spiritus Sanctus vivificans vita,
movens omnia,
et radix est in omni creatura,
ac omnia de immunditia abluit,
tergens crimina,
ac ungit vulnera,
et sic est fulgens ac laudabilis vita,
suscitans et resuscitans omnia.



Espírito Santo
Dando vida à vida
Movendo o todo
És a raiz de toda criatura
lavando toda impureza
limpando a culpa
e ungindo as feridas
Assim és fulgor
e digno de louvor
Suscitando e Ressuscitando
tudo que é

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Quem és tu Espírito de Amor?



«Quem és tu,

Doce luz que me preenche

e ilumina a obscuridade do meu coração?

Conduzes-me como a mão de uma mãe

E se me soltasses,
não saberia nem dar mais um passo.
És o espaço que envolve todo meu ser e o encerra em si.
Se Fosse abandonado por ti
cairia no abismo do nada,
de onde tu o elevas ao Ser.
Tu, mais próximo de mim que eu mesmo
e mais íntimo que minha intimidade,
E, sem dúvida,
permaneces inalcançável e incompreensível,
E que faz brotar todo nome:
Espírito Santo — Amor eterno!»


«Não és Tu

O doce maná

que do coração do Filho flui para o meu,

alimento dos anjos e dos bem aventurados?

Aquele que da morte à vida se elevou,

Também a mim despertou a uma nova vida

Do sono da morte.

E nova vida me doa

Dia após dia.

E um dia me cumulará de plenitude.

Vida de minha Vida.

Sim, Tu mesmo,

Espírito Santo, – Vida Eterna!»


Santa Teresa Benedicta da Cruz (Edith Stein) | 1891 - 1942

Poesias, V, p. 769´






Fonte: Carmelitas PT

terça-feira, 3 de maio de 2016

ENCONTRO COM O MUNDO DA CULTURA NO COLLÈGE DES BERNARDINS DISCURSO DO PAPA BENTO XVI


VIAGEM APOSTÓLICA À FRANÇA  POR OCASIÃO DO 150º ANIVERSÁRIO  DAS APARIÇÕES DE LOURDES (12 - 15 DE SETEMBRO DE 2008)    


Paris
Sexta-feira 12 de Setembro de 2008






Senhor Cardeal,
Senhora Ministra da Cultura,
Senhor Prefeito,
Senhor Chanceler do Institut de France,
Caros amigos,


Obrigado, Senhor Cardeal, pelas suas amáveis palavras. Encontramo-nos num lugar histórico, edificado pelos filhos de São Bernardo de Claraval, que o seu predecessor, o saudoso Cardeal Jean-Marie Lustigier, quis como centro de diálogo entre a Sabedoria cristã e as correntes culturais, intelectuais e artísticas da sociedade actual. Saúdo de modo particular a Senhora Ministra da Cultura que representa o Governo, bemo como os Senhores Giscard d’Estaing e Chirac. Dirijo igualmente a minha saudação aos Ministros presentes, aos representantes da Unesco, ao Senhor Prefeito de Paris e a todas as autoridades presentes. Não posso esquecer os meus colegas do Institut de France, que conhecem a consideração que nutro a seu respeito. Agradeço ao Príncipe de Broglie as suas cordiais palavras. Ver-nos-emos novamente amanhã de manhã. Agradeço aos delegados da comunidade muçulmana francesa por terem aceitado participar neste encontro: faço-lhes os meus melhores votos pelo ramadan em curso.A minha saudação calorosa vai agora naturalmente para o conjunto multiforme do mundo da cultura que vós, caros convidados, tão dignamente representais.


Esta tarde gostaria de vos falar das origens da teologia ocidental e das raízes da cultura europeia. Logo no início lembrei que o lugar em que nos encontramos é de certa forma emblemático. De facto, está ligado à cultura monástica, pois aqui viveram jovens monges, esforçando-se por chegar a uma compreensão mais profunda da sua vocação e viver melhor a própria missão. Trata-se de uma experiência que ainda hoje tem interesse para nós, ou encontramo-nos somente num mundo já ultrapassado? Para responder, devemos reflectir um pouco sobre a natureza do mesmo monaquismo ocidental. De que é que se tratava na época? De acordo com a história dos efeitos do monaquismo, podemos dizer que, na grande viragem cultural produzida pela migração de povos e pelos novos ordenamentos estatais que se vinham formando, os mosteiros eram os lugares onde sobreviviam os tesouros da velha cultura e onde, a partir dos mesmos, se vinha formando gradualmente uma nova cultura. Mas, como se verifica isto? Qual era a motivação que levava as pessoas a reunirem-se nestes lugares? Que intenções tinham? Como viveram?


Em primeiro lugar e antes de mais nada há que dizer, com muito realismo, que não era intenção deles criar uma cultura e nem mesmo conservar uma cultura do passado. A sua motivação era bem mais elementar. O seu objectivo era: quaerere Deum, buscar Deus. Na confusão dos tempo em que nada parecia resistir, eles queriam fazer o essencial: empenhar-se por encontrar aquilo que vale e sempre permanece, encontrar a mesma Vida. Andavam à procura de Deus. Queriam passar das coisas secundárias às essenciais, ao único que é verdadeiramente importante e fiável. Diz-se que estavam orientados de forma “escatológica”. Mas isto não deve ser entendido em sentido cronológico, como se olhassem para o fim do mundo ou para a própria morte, mas em sentido existencial: por detrás das coisas provisórias buscavam o definitivo. Quaerere Deum: visto que eram cristãos, não se tratava de uma expedição num deserto sem estradas, de uma busca rumo à absoluta escuridão. O mesmo Deus tinha estabelecido sinais de percurso, mais, tinha aberto um caminho, e a tarefa consistia em achá-lo e segui-lo. Este caminho era a sua Palavra que, nos livros das Sagradas Escrituras, se abria diante dos homens. Consequentemente, a procura de Deus requer por exigência intrínseca, uma cultura da palavra ou, como se exprime Jean Leclercq: no monaquismo ocidental, escatologia e gramática estão intimamente conexas uma com a outra (cf. L'amour des lettres et le désir de Dieu, p. 14). O desejo de Deus, le désir de Dieu, inclui l'amour des lettres, o amor pela palavra, o penetrar em todas as suas dimensões. Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê-la na sua estrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua. Uma vez que a procura de Deus exigia a cultura da palavra, faz parte do mosteiro a biblioteca que indica as vias rumo à palavra. Pelo mesmo motivo, dele faz parte também a escola, onde concretamente se abrem as vias. Bento chama ao mosteiro um dominici servitii schola. O mosteiro serve para a eruditio, a formação e a erudição do homem - uma formação cujo objectivo último é fazer com que o homem aprenda a servir a Deus. Ma isto supõe precisamente também a formação da razão, a erudição, baseado na qual o homem aprende a perceber, por entre as palavras, a Palavra.


Para ter a visão plena da cultura da palavra, que pertence à essência da procura de Deus, devemos dar outro passo. A Palavra que abre o caminho da procura de Deus, sendo ela mesma este caminho, é uma Palavra que se refere à comunidade. Por certo, ela trespassa o coração de cada indivíduo (cf. Act 2,37). Gregório Magno compara isto a uma dor repentina que atravessa a nossa alma sonolenta e nos acorda tornando-nos atentos a Deus (cf. Leclercq, ibid., p. 35). Deste modo, porém, torna-nos atentos também uns aos outros. A Palavra não leva apenas pela via individual de uma imersão mística, mas introduz na comunhão com todos os que caminham na fé. Por isso, é preciso não só reflectir sobre a Palavra, mas também lê-la de modo justo. Como sucedia na escola rabínica, também entre os monges a mesma leitura feita por cada um é simultaneamente um acto corporal. "Se, porém,legere e lectio são usados sem um atributo explicativo indicam, na maioria das vezes, uma actividade que, como no canto e na escrita, compreende todo o corpo e todo o espírito", diz a este respeito Jean Leclercq (ibid., p. 21).


Mas é preciso dar outro passo. A Palavra de Deus introduz-nos nós mesmos no colóquio com Deus. O Deus que fala na Bíblia ensina-nos como podemos falar com Ele. Especialmente no Livro dos Salmos, dá-nos as palavras com as quais podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossa vida, com os seus altos e baixos, para o colóquio diante d'Ele, transformando assim a mesma vida num movimento para Ele. Os Salmos contêm muitas vezes instruções também sobre o modo como devem ser cantados e acompanhados com instrumentos musicais. Para rezar apoiados na Palavra de Deus não basta o simples pronunciar, requer-se a música. Dois cânticos da liturgia cristã derivam de textos bíblicos que os põem nos lábios dos Anjos: o Glória, que é cantado pelos Anjos no nascimento de Jesus, e o Sanctus, que, segundo Isaías 6, é a aclamação dos Serafins que estão mesmo juntos de Deus. Nesta perspectiva, a Liturgia cristã é convite a cantar juntos com os Anjos, levando assim a palavra ao seu destino mais elevado. Ouçamos uma vez mais, neste contexto, Jean Leclercq: "Os monges deviam encontrar melodias que traduziam em sons a adesão do homem redimido aos mistérios que ele celebra. Os poucos capitéis de Cluny, que se conservaram até aos nossos dias, mostram assim os símbolos cristológicos de cada um dos tons" (cf. ibid. p. 229).


Em Bento, vale como regra determinante para a oração e o canto dos monges esta palavra do Salmo: Coram angelis psallam Tibi, Domine - Na presença do anjos Vos hei-de cantar, Senhor (cf. 138,1). Aqui se exprime a consciência de cantar, na oração comunitária na presença de toda a corte celeste e consequentemente estar sujeitos ao critério supremo: rezar e cantar a fim de modo a poder unir-se à música dos Espíritos sublimes, que eram considerados os autores da harmonia do cosmo, da música das esferas celestes. Partindo disto, é possível compreender a seriedade de uma meditação de São Bernardo de Claraval, que usa uma palavra de tradição platónica transmitida por Agostinho para julgar o mau canto dos monges, que, obviamente, para ele não era de forma alguma um pequeno incidente, no fundo secundário. Ele qualifica a confusão de um canto mal executado como um precipitar na "zona da dessemelhança" - na regio dissimilitudinis. Agostinho tomara esta palavra da filosofia platónica para caracterizar o seu estado interior antes da conversão (cf. Confissões, VII 10.16): o homem, que é criado à semelhança de Deus, em consequência do seu abandono do seu abandono de Deus precipita na "zona da dessemelhança" - num afastamento de Deus tal que já não O reflecte mais, tornando-se assim dessemelhante não apenas de Deus, mas também de si próprio, do verdadeiro ser homem. É certamente drástico Bernardo quando, para qualificar os cantos mal executados dos monges, usa esta palavra, que indica a queda do homem longe de si próprio. Mas demonstra também como ele leva a sério o caso. Demonstra que a cultura do canto é também cultura do ser e que os monges com as suas orações e cânticos devem corresponder à grandeza da Palavra que lhes está confiada, à sua exigência de verdadeira beleza. Desta exigência intrínseca de falar com Deus e de O cantar com as palavras que Ele mesmo doou, nasceu a grande música ocidental. Não se tratava de uma "criatividade" privada, com a qual o indivíduo levanta um monumento a si próprio, tomando essencialmente como critério a representação do próprio eu. Mas tratava-se de reconhecer atentamente, com os "ouvidos do coração", as leis intrínsecas da música da mesma criação, as formas essenciais da música inseridas pelo Criador no seu mundo e no homem, e achar assim a música digna de Deus, que ao mesmo tempo seja também verdadeiramente digna do homem e faça ressoar de modo puro a sua dignidade.


Para compreender de alguma forma a cultura da palavra que, no monaquismo ocidental, se desenvolveu a partir da busca de Deus, iniciando de dentro, é preciso aludir brevemente à particularidade do Livro ou dos Livros onde esta Palavra veio ao encontro dos monges. A Bíblia, vista sob o aspecto puramente histórico ou literário, não é simplesmente um livro mas uma coletânea de textos literários, cuja redacção se estende ao longo de mais de um milénio e cada um dos seus livros não sendo os diversos livros facilmente reconhecíveis como partes duma unidade interior; pelo contrário, existem tensões palpáveis entre eles. Isto acontece já no âmbito da Bíblia de Israel, que nós cristãos chamamos o Antigo Testamento. Mas verifica-se muito mais quando nós, como cristãos, ligamos o Novo Testamento e os seus escritos, como se fosse chave hermenêutica, à Bíblia de Israel, interpretando-a assim como caminho para Cristo. No Novo Testamento, justamente, a Bíblia normalmente não é qualificada como "a Escritura", mas como "as Escrituras" que depois, no seu conjunto, são consideradas como a única Palavra de Deus a nós dirigida. Este plural, porém, torna evidente que aqui a Palavra de Deus nos alcança somente através da palavra humana, através das palavras humanas, ou seja, que Deus nos fala através dos homens, mediante as suas palavras e a sua história. Isto, por sua vez, significa que o aspecto divino da Palavra e das palavras simplesmente não é óbvio. Dito com expressões modernas: a unidade dos livros bíblicos e o carácter divino das suas palavras não são, dum ponto de vista puramente histórico, alcançáveis. Elemento histórico é a multiplicidade e a humanidade. Daqui se entende a formulação de um dístico medieval que, à primeira vista, parece desconcertante: "Littera gesta docet - quid credas allegoria..." (cf. Augustinus de Dacia, Rotulus pugillaris, I). A letra mostra os factos; o que deves crer diz-lo a alegoria, isto é, a interpretação cristológica e pneumática.


Podemos exprimir tudo isto de maneira ainda mais simples: a Escritura necessita da interpretação e precisa da comunidade onde se formou e é vivida Nesta possui a sua unidade e aí se descerra o sentido que mantém o todo unido. Ou dito de outro modo: existem dimensões do significado da Palavra e das palavras, que só se descerram na comunhão vivida desta Palavra que cria a história. Mediante a crescente percepção das distintas dimensões do sentido, a Palavra não fica desvalorizada, antes aparece em toda a sua grandeza e dignidade. Por isso, o "Catecismo da Igreja Católica" pode dizer justamente que o cristianismo não é simplesmente uma religião do livro no sentido clássico (cf. nº. 108). O cristianismo percebe nas palavras a Palavra, o mesmoLogos, que explica o seu mistério através de tal multiplicidade. Esta estrutura particular da Bíblia é um desafio sempre novo para cada geração. Por sua natureza, ela exclui tudo o que hoje se chama fundamentalismo. De facto, a Palavra do próprio Deus nunca se apresenta na simples literalidade do texto. Para alcançá-la, é preciso transcender a literalidade num processo de compreensão, que se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto e, portanto, deve tornar-se também um processo de vida. Sempre e só na unidade dinâmica do conjunto é que os muitos livros formam um Livro, se revelam na palavra e na história humana a Palavra de Deus e o agir de Deus no mundo.


Este tema aparece ilustrado em toda a sua dramaticidade nos escritos de São Paulo. O que significa a transcendência da letra e a sua compreensão unicamente a partir do conjunto está expresso por ele de um modo drástico na frase: "A letra mata, mas o Espírito vivifica" (2 Cor 3,6). E ainda: "Onde está o Espírito [...] aí está a liberdade" (2 Cor 3,17). Todavia, a grandeza e a amplitude de tal visão da Palavra bíblica só se pode compreender, se se escuta a profundamente Paulo: percebe-se então que este Espírito libertador tem um nome e que consequentemente a liberdade tem uma medida interior: "O Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade" (2 Cor 3,17). O Espírito libertador não é simplesmente a ideia própria, a visão pessoal de quem interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos indica a estrada. Com a palavra sobre o Espírito e sobre a liberdade abre-se um vasto horizonte, mas ao mesmo tempo põe-se claramente limite ao arbítrio e à subjectividade, um limite que obriga de modo inequívoco tanto o indivíduo como a comunidade e cria um vínculo superior ao da letra: o vínculo do intelecto e do amor. Esta tensão entre vínculo e liberdade, que ultrapassa de longe o problema literário da interpretação da Escritura, determinou também o pensamento e a obra do monaquismo e plasmou profundamente a cultura ocidental. Esta tensão apresenta-se novamente também à nossa geração como desafio perante os pólos do arbítrio subjectivo, por um lado, e do fanatismo fundamentalista, por outro. Seria fatal, se a cultura europeia actual conseguisse entender praticamente a liberdade só como a ausência total de vínculos, favorecendo assim inevitavelmente o fanatismo e o arbítrio. A ausência de vínculos e o arbítrio não são a liberdade, mas a sua destruição.


Na consideração sobre a "escola do serviço divino" - como Bento chamava o monaquismo - até agora nos limitamos a considerar só a sua orientação para a palavra, para o "ora". E, de facto, é a partir disto que se determina a direcção do conjunto da vida monástica. A nossa reflexão, porém, ficaria incompleta, se não detivéssemos nosso olhar também, mesmo que brevemente, sobre o segundo elemento do monaquismo descrito sob "labora". No mundo grego, o trabalho físico era considerado a ocupação dos escravos. O sábio, o homem verdadeiramente livre, dedica-se unicamente às realidades espirituais; o trabalho físico, como algo inferior, deixava-se àqueles homens que não são capazes desta existência superior, no mundo do espírito. Absolutamente distinta era a tradição judaica: todos os grandes rabinos exerciam contemporaneamente também uma profissão artesanal. O caso de Paulo, que, já como rabino e depois como anunciador do Evangelho aos gentios, também era tecelão de tendas e se sustentava com o trabalho das próprias mãos, não constitui uma excepção, mas segue a tradição comum do rabinismo. O monaquismo acolheu esta tradição; o trabalho manual é parte constitutiva do monaquismo cristão. Bento, na sua Regra, não fala propriamente da escola, embora naquela - como vimos - o ensino e a aprendizagem fossem praticamente previstos. Mas fala explicitamente do trabalho (cf. cap. 48). O mesmo se diga de Agostinho, que dedicou ao trabalho dos monges um livro em particular. Os cristãos, que deste modo prosseguiam na tradição há muito praticada pelo judaísmo, deviam além disso sentir-se interpelados pela palavra de Jesus no Evangelho de João, quando defendia o próprio agir num sábado: “Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho” (5,17). O mundo greco-romano desconhecia um Deus-Criador; na sua concepção, a divindade suprema não podia, por assim dizer, sujar as próprias mãos com a criação da matéria. “Construir” o mundo estava reservado ao demiurgo, uma divindade subordinada. Bem distinto é o Deus cristão: Ele, o Uno, o verdadeiro e único Deus, é também o Criador. Deus trabalha; continua a trabalhar na e sobre a história dos homens. Em Cristo, entra como Pessoa no trabalho cansativo da história. “Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho”. O mesmo Deus é o Criador do mundo, e a criação ainda não está terminada. Deus trabalha. Assim o trabalho dos homens deveria aparecer como uma expressão particular da sua semelhança com Deus e, deste modo, o homem tem a faculdade e pode participar no agir de Deus na criação do mundo. Do monaquismo faz parte, junto com a cultura da palavra, uma cultura do trabalho, sem a qual o progresso da Europa, o seu ethos e a própria concepção do mundo são impensáveis. Mas este ethos deveria incluir a vontade de fazer com que o trabalho e a determinação da história por parte do homem sejam uma colaboração com o Criador, haurindo d’Ele a medida. Onde falta esta medida e o homem eleva-se a si mesmo a criador deificado, a transformação do mundo pode facilmente desembocar na sua destruição.


Partimos da observação de que, com a derrocada dos velhos sistemas e certezas, a atitude de fundo dos monges era o quaerere Deus - ir em busca de Deus. Poderíamos dizer que esta é verdadeiramente a atitude filosófica: olhar para além das realidades penúltimas e ir à procura das últimas, verdadeiras. Quem se fazia monge, encaminhava-se por uma via longa e elevada, mas já tinha encontrado a direcção: a Palavra da Bíblia na qual ouvia falar o próprio Deus. Agora devia procurar entendê-Lo, para poder chegar até Ele. Assim o caminho dos monges, embora permanecendo imensurável na sua extensão, desenrola-se praticamente no âmbito da Palavra acolhida. A procura dos monges, sob certos aspectos, já leva em si mesma um achado. Assim para que esta busca se torne possível, é necessário que antes haja já um primeiro movimento que não só suscite a vontade de procurar, mas que torne também credível que nesta Palavra está escondido o caminho - ou melhor: que, nesta Palavra, o mesmo Deus vem ao encontro dos homens, e por isso os homens, através dela, podem alcançar Deus. Por outras palavras: deve haver o anúncio que se dirige ao homem criando assim nele uma convicção que se pode transformar em vida. A fim de que se abra um caminho para o âmago da Palavra bíblica enquanto Palavra de Deus, esta mesma Palavra deve ser antes anunciada para o exterior. A clássica expressão desta necessidade que tem a fé cristã de se tornar comunicável aos outros está numa frase da Primeira Carta de Pedroque, na teologia medieval, era considerada a razão bíblica do trabalho dos teólogos: “Estai sempre prontos a responder [...] a todo aquele que vos perguntar a razão (logos) da vossa esperança” (3,15). (Logos deve-se tornar apo-logia, a Palavra deve tornar-se resposta). De facto, os cristãos da Igreja primitiva não consideraram o seu anúncio missionário como uma propaganda, que devia servir para fazer crescer o próprio grupo, mas como uma necessidade intrínseca que derivava da natureza da sua fé: o Deus em que acreditavam era o Deus de todos, o Deus uno e verdadeiro que se tinha mostrado na história de Israel e, enfim, no seu Filho, dando assim a resposta que dizia respeito a todos e que, no seu íntimo, todos os homens aguardam. A universalidade de Deus e a universalidade da razão aberta a Ele constituíam para eles o motivo e, ao mesmo tempo, o dever do anúncio. Para eles, a fé não dependia dos hábitos culturais, que divergem de um povo para outro, mas ao âmbito da verdade que diz respeito igualmente a todos.


O esquema fundamental do anúncio cristão “para o exterior” - para os homens que, com suas perguntas andam à procura - acha-se no discurso de São Paulo no Areópago. Neste contexto, tenhamos em conta que o Areópago não era uma espécie de academia, onde as cabeças mais ilustres se encontravam para discutir acerca das coisas sublimes, mas um tribunal que era competente em matéria de religião e devia opor-se à importação de religiões estrangeiras. É precisamente esta a acusação contra Paulo: “Parece que é um pregoeiro de deuses estrangeiros” (Act 17,18). Ao que Paulo replica: “Encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’, Pois bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio” (cf. 17,23). Paulo não anuncia deuses desconhecidos. Anuncia Aquele que os homens ignoram, e todavia conhecem-No: o Ignorado-Conhecido; Aquele que procuram e, no fundo, conhecem, mas que é o Ignorado e o Incognoscível. O mais profundo do pensamento e do sentimento humanos sabe, de algum modo, que Ele deve existir. Que na origem de todas as coisas deve estar não a irracionalidade, mas a Razão criativa; não o ocaso cego, mas a liberdade. No entanto, apesar de todos os homens saberem de algum modo isto - como Paulo ressalta na Carta aos Romanos (1,21) - este conhecimento permanece irreal: um Deus só pensado e inventado não é um Deus. Se Ele não se mostra, não chegamos a Ele de forma alguma. A novidade do anúncio cristão é a possibilidade de dizer agora a todos os povos: Ele mostrou-se. Ele em pessoa. E agora está aberto o caminho para Ele. A novidade do anúncio cristão consiste num facto: Ele mostrou-se. Isto, porém, não é um facto cego, mas um facto que, em si mesmo, é Logos - presença da Razão eterna na nossa carne. Verbum caro factum est (Jo 1,14): assim mesmo, agora no facto está o Logos, o Logos presente entre nós. O facto é razoável. Certamente, continua a ser necessária a humildade da razão para poder acolhê-lo; é precisa a humildade do homem que responde à humildade de Deus.


A nossa situação actual, sob muitos aspectos, é distinta daquela que Paulo encontrou em Atenas, mas, mesmo assim, em muitas coisas é bastante análoga. As nossas cidades já não estão cheias de altares e imagens de muitas divindades. Para muitos, Deus tornou-se verdadeiramente o grande Desconhecido. Mas, como então por detrás das numerosas representações dos deuses estava escondida e presente a pergunta acerca do Deus desconhecido; também a actual ausência de Deus é tacitamente importunada pela pergunta sobre Ele. Quaerere Deum - buscar a Deus e deixar-se encontrar por Ele: isto, hoje, não é menos necessário do que em tempos passados. Uma cultura meramente positivista que relegasse para o âmbito subjectivo, como não científica, a pergunta acerca de Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, o descalabro do humanismo, cujas consequências não deixariam de ser graves. O que fundamentou a cultura da Europa, a procura de Deus e a disponibilidade para O escutar, permanece também hoje o fundamento de toda a verdadeira cultura.






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