terça-feira, 28 de junho de 2016

A glória de Deus é o homem vivo; e a vida do homem é a visão de Deus - Santo Irineu de Lião



O esplendor de Deus dá a vida. Consequentemente, os que veem a Deus recebem a vida. Por isso, aquele que é inacessível, incompreensível e invisível, torna-se compreensível e acessível para os homens, a fim de dar a vida aos que o alcançam e veem. Assim como viver sem a vida é impossível, sem a participação de Deus não há vida. Participar de Deus consiste em vê-lo e gozar da sua bondade. Por conseguinte, os homens hão de ver a Deus para poderem viver. Por esta visão tornam-se imortais e se elevam até ele. Como já disse, estas coisas foram anunciadas pelos profetas de modo figurado: que Deus seria visto pelos homens que possuem seu Espírito e aguardam sem cessar sua vinda. Assim também diz Moisés no Deuteronômio: Nesse dia veremos que Deus pode falar ao homem, sem que este deixe de viver (cf. Dt 5,24).

Deus, que realiza tudo em todos, é inacessível e inefável, quanto ao seu poder e à sua grandeza, para os seres por ele criados. Mas não é de modo algum desconhecido, pois todos sabemos, por meio do seu Verbo, que há um só Deus Pai que contém todas as coisas e dá existência a todas elas, como está escrito no Evangelho: A Deus, ninguém jamais viu. Mas o Unigênito de Deus, que está na intimidade do Pai, ele no-lo deu a conhecer (Jo 1,18).

Portanto, quem desde o princípio nos dá a conhecer o Pai é o Filho, que desde o princípio está com o Pai.As visões proféticas, a diversidade de carismas, os ministérios, a glorificação do Pai, tudo isto, como uma sinfonia bem composta e harmoniosa, ele manifestou aos homens, no tempo próprio, para seu proveito. Porque onde há composição, há harmonia; onde há harmonia, tudo acontece no tempo próprio; e quando tudo acontece no tempo próprio, há proveito.

Por esta razão, o Verbo se tornou o administrador da graça do Pai para proveito dos homens. Em favor deles, pôs em prática o seu plano: mostrar Deus ao homem e apresentar o homem a Deus. No entanto, conservou a invisibilidade do Pai: desta forma o homem não desprezaria a Deus e seria sempre estimulado a progredir. Ao mesmo tempo, mostrou também, por diversos modos, que Deus é visível aos homens, para não acontecer que, privado totalmente de Deus, o homem chegasse a perder a própria existência. Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus. Com efeito, se a manifestação de Deus, através da criação dá a vida a todos os seres da terra, muito mais a manifestação do Pai, por meio do Verbo, dá a vida a todos os que veem a Deus.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Santo Efrém, o Sírio


PAPA BENTO XVI

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 28 de Novembro de 2007


Queridos irmãos e irmãs!

Segundo a opinião comum de hoje, o cristianismo seria uma religião europeia, que teria exportado depois a cultura deste Continente para outros Países. Mas a realidade é muito mais complexa, porque a raiz da religião cristã se encontra no Antigo Testamento e portanto em Jerusalém e no mundo semítico. O cristianismo alimenta-se sempre desta raiz do Antigo Testamento. Também a sua expansão nos primeiros séculos se verificou quer a Ocidente no mundo greco-latino, onde inspirou depois a cultura europeia quer a Oriente, até à Pérsia, à Índia, contribuindo assim para suscitar uma cultura específica, em línguas semíticas, com uma identidade própria. Para mostrar esta pluriformidade da única fé cristã dos inícios, na catequese de quarta-feira passada falei de um representante deste outro cristianismo, Afrates, o sábio persa, por nós quase desconhecido. Na mesma linha desejaria falar hoje sobre Santo Efrém, nascido em Nisibi por volta de 306 numa família cristã. Ele foi o mais importante representante do cristianismo de língua síria e conseguiu conciliar de modo único a vocação do teólogo com a do poeta. Formou-se e cresceu ao lado de Tiago, Bispo de Nisibi (303-338), e juntamente com ele fundou a escola teológica da sua cidade. Ordenado diácono, viveu intensamente a vida da comunidade cristã local até 363, ano em que em Nisibi caiu nas mãos dos Persas. Efrém então emigrou para Edessa, onde prosseguiu a sua actividade de pregador. Faleceu nesta cidade no ano de 373, vítima do contágio contraído no cuidado dos doentes de peste. Não se tem a certeza se era monge, mas contudo é certo que permaneceu diácono toda a sua vida e abraçou a virgindade e a pobreza. Assim se mostra na especificidade da sua expressão cultural a comum e fundamental identidade cristã: a fé, a esperança esta esperança que permite viver pobre e casto neste mundo, pondo todas as expectativas no Senhor e por fim a caridade, até ao dom de si mesmo na cura dos doentes de peste.

Santo Efrém deixou-nos uma grande herança teológica: a sua considerável produção pode reunir-se em quatro categorias: obras escritas em prosa ordinária (as suas obras polémicas, ou os comentários bíblicos); obras em prosa poética; homilias em versos; por fim os hinos, certamente a obra mais ampla de Efrém. Ele é um autor rico e interessante sob muitos aspectos, mas sobretudo sob o perfil teológico. A especificidade do seu trabalho é que nele teologia e poesia se encontram. Querendo aproximar-nos da doutrina, devemos insistir desde o início sobre este aspecto: isto é, o facto de que ele faz teologia de forma poética. A poesia permite-lhe aprofundar a reflexão teológica através de paradoxos e imagens. Ao mesmo tempo a sua teologia torna-se liturgia, torna-se música: de facto, ele era um grande compositor, um músico. Teologia, reflexão sobre a fé, poesia, canto e louvor a Deus caminham juntos; e é precisamente neste carácter litúrgico que na teologia de Efrém sobressai nitidamente a verdade divina. Na sua busca de Deus, no seu fazer teologia, ele segue o caminho do paradoxo e do símbolo. As imagens contrapostas são por ele amplamente privilegiadas, porque lhe servem para ressaltar o mistério de Deus.

Não posso agora apresentar muito acerca dele, também porque a poesia dificilmente se pode traduzir, mas para dar pelo menos uma ideia gostaria de citar uma parte de dois hinos. Antes de tudo, também em vista do próximo Advento, proponho-vos algumas maravilhosas imagens tiradas dos hinos Sobre a Natividade de Cristo.Diante da Virgem, Efrém manifesta com tonalidade inspirada a sua estupefacção:

"O Senhor vem a ela / para se fazer servo. / O verbo veio a ela / para descer no seu seio. / O relâmpago veio a ela / para não fazer barulho algum. / O pastor veio a ela / e eis o Anjo nascido, que humildemente chora. / Dado que o seio de Maria / inverteu os papéis:

Aquele que criou todas as coisas / entrou em sua posse, mas pobre. / O Altíssimo veio a ela (Maria), / mas entrou humilde. / O esplendor veio a ela, / mas revestido de humildes vestes. / Aquele que prodigaliza todas as coisas / conheceu a fome. / Aquele que dessedenta todos / conheceu a sede. / Nu e despojado saiu dela, ele que reveste (de beleza) todas as coisas".

(Hino "De Nativitate" 11, 6-8).

Para expressar o mistério de Cristo Efrém usa uma grande diversidade de temas, de expressões, de imagens. Num dos seus hinos, ele relaciona de modo eficaz Adão (no paraíso) com Cristo (na Eucaristia): "Foi fechando / com a espada do querubim, / que fechou o caminho da árvore da vida. / Mas para os povos, / o Senhor desta árvore / deu-se como alimento / ele mesmo na oblação (eucarística). / As árvores do Éden / foram dadas como alimento / à primazia de Adão. / Para nós, o jardineiro / do Jardim em pessoa / fez-se alimento / para as nossas almas. / De facto, todos tínhamos saído / do Paraíso juntamente com Adão, / que o deixou para trs. / Agora que a espada foi tirada / lá (na cruz)da lança / nós podemos ali voltar".

(Hino 49, 9-11).

Para falar da Eucaristia Efrém serve-se de duas imagens: as brasas e o carvão ardente, e a pérola. O tema das brasas é tomado pelo profeta Isaías (cf. 6, 6). É a imagem do serafim que, com as pinças, pega nas brasas, e simplesmente toca de modo leve os lábios do profeta para os purificar; o cristão, ao contrário, toca levemente e consome a Brasa, que é o próprio Cristo:

"No teu pão esconde-se o Espírito / que não pode ser consumado; / no teu vinho há o fogo que não se pode beber. / O Espírito no teu pão, o fogo no teu vinho: / eis uma maravilha acolhida pelos nossos lábios. / O serafim não podia aproximar os seus dedos da brasa, / que foi aproximada apenas pelos lábios de Isaías; / nem os dedos lhe pegaram, nem os lábios a engoliram; / mas o Senhor concedeu-nos fazer as duas coisas. / O fogo desceu com ira para destruir os pecadores, / mas o fogo da graça desce sobre o pão e nele permanece. / Em vez do fogo que destruiu o homem, / comemos o fogo no pão / e fomos vivificados".

(Hino "De Fide" 10, 8-10).

E ainda um último exemplo dos hinos de Santo Efrém, onde fala da pérola como símbolo da riqueza e da beleza da fé:

"Coloquei (a pérola), meus irmãos, na palma da mão, / para a poder examinar. / Observei-a de uma parte e da outra: / tinha um só aspecto nos dois lados. / (Assim) é a busca do Filho, imperscrutável, / porque ela é toda luz. / Na sua nitidez eu vi o Nítido, / que não se torna opaco; / e na sua pureza, / o símbolo grande do corpo de nosso Senhor, / que é puro. / Na sua indivisibilidade, vi a verdade, / que é indivisível".

(Hino "Sobre a Pérola" 1, 2-3).

A figura de Efrém ainda é plenamente actual para a vida das várias Igrejas cristãs. Descobrimo-lo em primeiro lugar como teólogo, que a partir da Sagrada Escritura reflecte poeticamente sobre o mistério da redenção do homem realizada por Cristo, Verbo de Deus encarnado. A sua é uma reflexão teológica expressa com imagens e símbolos tirados da natureza, da vida quotidiana e da Bíblia. À poesia e aos hinos para a liturgia, Efrém confere um carácter didáctico e catequético; trata-se de hinos teológicos e ao mesmo tempo adequados para a recitação ou o cântico litúrgico. Efrém serve-se destes hinos para difundir, por ocasião das festas litúrgicas, a doutrina da Igreja. Com o tempo eles revelaram-se um meio catequético extremamente eficaz para a comunidade cristã.

É importante a reflexão de Efrém sobre o tema de Deus criador: na criação nada está isolado, e o mundo é, ao lado da Sagrada Escritura, uma Bíblia de Deus. Usando de modo errado a sua liberdade, o homem inverte a ordem da criação. Para Efrém é relevante o papel da mulher. O modo em que ele fala dela é sempre inspirado na sensibilidade e no respeito: a habitação de Jesus no seio de Maria elevou em grande medida a dignidade da mulher. Para Efrém, assim como não há Redenção sem Jesus, também não há Encarnação sem Maria. As dimensões divina e humana do mistério da nossa redenção encontram-se já nos textos de Efrém; de modo poético e com imagens fundamentalmente escrituristas, ele antecipa o quadro teológico e de certo modo a própria linguagem das grandes definições dos Concílios do século V.

Efrém, honrado pela tradição cristã com o título de "cítara do Espírito Santo", permaneceu diácono da sua Igreja toda a vida. Foi uma escolha decisiva e emblemática: ele foi diácono, isto é, servo, quer no ministério litúrgico, quer, mais radicalmente, no amor a Cristo, por ele cantado de modo inigualável, quer por fim na caridade para com os irmãos, que introduziu com rara mestria no conhecimento da divina Revelação.




«A Esperança da Vida Nova em Cristo»

Dos Sermãos de Santo Efrém
(Sermo 3, De fine et admonitione 2. 4-5: 
Opera, edição Lamy 3, 216-222)

Afugenta, Senhor, com a luz diurna de tua sabedoria,
as trevas noturnas de nossa mente,
para que, iluminados por Ti,
te sirvamos com espírito renovado e puro.
A chegada do sol representa para os mortais
o início de seu trabalho;
Adorne, Senhor, em nossas almas uma mansão
em que possa continuar aquele dia
que não conhece o ocaso.
Faze que saibamos contemplar em nós mesmos
a vida da ressurreição,
e que nada possa separa nossas mentes
de teus deleites.
Imprime em nós, Senhor, 
por nossa constante adesão a Ti, 
o selo daquele dia
que não depende do movimento solar.
Cada dia te estreitamos em nossos braços
e te recebemos em nosso corpo
por meio de teus sacramentos;
Faze que sejamos dignos de experimentar em nossa pessoa,
a ressurreição que esperamos.
Pela graça do batismo
trazemos escondido em nosso corpo
o tesouro que tu nos deste;
que este mesmo tesouro
vá crescendo na mesa dos teus sacramentos;
faze que nos alegremos de teus dons.
Temos em nós, Senhor, o teu memorial, 
recebido de tua mesa espiritual;
dá-nos que alcancemos sua realidade plena, 
na renovação futura.
Pedimos-te, Senhor, 
que aquela beleza espiritual
que tua vontade imortal faz brotar 
na mesma mortalidade
nos faça compreender nossa própria beleza.
Tua crucifixão, ó Salvador Nosso,
foi o término de tua vida mortal;
faz que crucifiquemos nossa mente
a fim de obter a vida espiritual.
Que tua ressurreição, ó Jesus, 
faça crescer em nós o homem espiritual;
que a visão de teus sinais sacramentais,
nos ajude ajude a conhecê-la.
Tuas disposições divinas, ó Salvador Nosso,
são figura do mundo espiritual
faze que nos movamos nele,
como homens espirituais.
Não prives, Senhor, a nossa mente
de tua manifestação espiritual,
e não separe de nós 
o calor de tua suavidade
A mortalidade latente em nosso corpo
derrama em nós a corrupção;
que a aspersão de teu amor espiritual
apague em nossos corações 
os efeitos da mortalidade.
Concede-nos, Senhor, que caminhemos com presteza 
para a nossa pátria definitiva 
e que, como Moisés, do cume do monte, 
possamos desde agora contemplá-la pela fé.