domingo, 1 de novembro de 2015
DISCURSO DO PAPA BENTO XVI POR OCASIÃO DO ENCONTRO COM OS ARTISTAS NA CAPELA SISTINA
Sábado, 21 de Novembro de 2009
Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no Episcopado
e no Sacerdócio
Ilustres Artistas
Senhoras e Senhores!
É com grande alegria que vos recebo neste lugar solene e rico de arte e de memórias. Dirijo a todos e a cada um a minha cordial saudação, e agradeço-vos por terdes aceite o meu convite. Com este encontro desejo expressar e renovar a amizade da Igreja com o mundo da arte, uma amizade consolidada no tempo, porque o Cristianismo, desde as suas origens, compreendeu bem o valor das artes e utilizou sabiamente as suas multiformes linguagens para comunicar a sua imutável mensagem de salvação. Esta amizade deve ser continuamente promovida e apoiada, para que seja autêntica e fecunda, adequada aos tempos e tenha em consideração as situações e as mudanças sociais e culturais. Eis o motivo deste nosso encontro. Agradeço de coração a D. Gianfranco Ravasi, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura e da Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja por o ter promovido e preparado, com os seus colaboradores, assim como pelas suas palavras que há pouco me dirigiu. Saúdo os Senhores Cardeais, os Bispos, os Sacerdotes e as distintas Personalidades aqui presentes. Agradeço também à Pontifíca Capela Musical Sistina que acompanha este momento significativo. Os protagonistas deste encontro sois vós, queridos e ilustres Artistas, pertencentes a países, culturas e religiões diversas, talvez até distantes de experiências religiosas, mas desejosos de manter viva uma comunicação com a Igreja católica e de não limitar os horizontes da existência unicamente à materialidade, a uma visão redutiva e banalizadora. Vós representais o mundo variegado das artes e, precisamente por isso, através de vós gostaria de fazer chegar a todos os artistas o meu convite à amizade, ao diálogo e à colaboração.
Algumas circunstâncias significativas enriquecem este momento. Recordamos o décimo aniversário da Carta aos Artistas do meu venerado predecessor, o Servo de Deus João Paulo II. Pela primeira vez, na vigília do Grande Jubileu do Ano 2000, este Pontífice, também ele artista, escreveu directamente aos artistas com a solenidade de um documento papal e o tom amistoso de uma conversa entre "quantos – como recita a carta – com apaixonada dedicação, procuram novas "epifanias" da beleza". O mesmo Papa, há vinte e cinco anos, proclamou padroeiro dos artistas o Beato Angélico, indicando nele um modelo de perfeita sintonia entre fé e arte. Depois, o meu pensamento vai ao dia 7 de Maio de 1964, há quarenta e cinco anos, quando, neste mesmo lugar se realizava um histórico acontecimento, fortemente querido pelo Papa Paulo VI para reafirmar a amizade entre a Igreja e as artes. As palavras que pronunciou naquela circunstância ressoam ainda hoje debaixo da abóbada desta Capela Sistina, tocando o coração e o intelecto. "Nós temos necessidade de vós – disse ele –. O nosso ministério precisa da vossa colaboração. Porque, como sabeis, o Nosso ministério é pregar e tornar acessível e compreensível, aliás comovedor, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E nesta operação... vós sois mestres. É a vossa profissão, a vossa missão; e a vossa arte é extrair do céu do espírito os seus tesouros e revesti-los de palavra, de cores, de formas de acessibilidade" (Insegnamenti II, [1964], 313). Era tanta a estima de Paulo VI pelos artistas que o estimulou a formular expressões deveras ousadas: "E se a Nós viesse a faltar o vosso auxílio – prosseguia – o ministério tornar-se-ia balbuciente e incerto e teria necessidade de fazer um esforço, diríamos, por se tornar ele mesmo artístico, aliás por se tornar profético. Para se elevar à força de expressão lírica da beleza intuitiva, teria necessidade de fazer coincidir o sacerdócio com a arte" (Ibid., 314). Naquela circunstância, Paulo VI assumiu o compromisso de "restabelecer a amizade entre a Igreja e os artistas", e pediu-lhes que o fizessem seu e o partilhassem, analisando com seriedade e objectividade os motivos que tinham perturbado essa relação e assumindo cada um com coragem e paixão a responsabilidade de um renovado e aprofundado percurso de conhecimento e de diálogo, em vista deum"renascimento"autênticoda arte, no contexto de um novo humanismo.
Aquele histórico encontro, como dizia, aconteceu aqui, neste santuário de fé e de criatividade humana. Não é portanto casual este nosso reencontrar-nos precisamente neste lugar, precioso pela sua arquitectura e pelas suas dimensões simbólicas, mas ainda mais pelos afrescos que o tornam inconfundível, começando pelas obras-primas de Perugino e Botticelli, Ghirlandaio e Cosimo Rosselli, Luca Signorelli e outros, para chegar às Histórias do Génesis e ao Juízo Final, obras excelsas de Michelangelo Buonarroti, que deixou aqui uma das criações mais extraordinárias de toda a história da arte. Ressoou aqui também com frequência a linguagem universal da música, graças ao génio de grandes músicos, que puseram a sua arte ao serviço da liturgia, ajudando a alma a elevar-se a Deus. Ao mesmo tempo, a Capela Sistina é um escrínio singular de memórias, porque constitui o cenário, solene e austero, de eventos que marcam a história da Igreja e da humanidade. Aqui, como sabeis, o Colégio dos cardeais elege o Papa; aqui vivi também eu, com trepidação e absoluta confiança no Senhor, o momento inesquecível da minha eleição para Sucessor do Apóstolo Pedro.
Queridos amigos, deixemos que estes afrescos hoje nos falem, atraindo-nos para a meta última da história humana. O Juízo Final, que sobressai atrás de mim, recorda que a história da humanidade é movimento e elevação, é inesgotável tensão para a plenitude, para a felicidade última, para um horizonte que excede sempre o presente enquanto o atravessa. Mas na sua dramaticidade este afresco coloca diante dos nossos olhos também o perigo da queda definitiva do homem, ameaça que domina a humanidade quando se deixa seduzir pelas forças do mal. Por isso, o afresco lança um forte grito profético contra o mal; contra qualquer forma de injustiça. Mas para os crentes Cristo ressuscitado é o Caminho, a Verdade e a Vida. Para quem o segue fielmente é a Porta que introduz naquele "face a face", naquela visão de Deus da qual brota já sem limites a felicidade plena e definitiva. Michelangelo oferece assim à nossa visão o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim da história, e convida-nos a percorrer com alegria, coragem e esperança o itinerário da vida. A dramática beleza da pintura de Michelangelo, com as suas cores e formas, torna-se portanto anúncio de esperança, convite poderoso a elevar o olhar rumo ao horizonte último. O vínculo profundo entre beleza e esperança constituía também o núcleo essencial da sugestiva Mensagem que Paulo VI enviou aos artistas no encerramento do Concílio Vaticano II, a 8 de Dezembro de 1965: "A todos vós – proclamou solenemente – a Igreja do Concílio diz com a nossa voz: se vós sois os amigos da verdadeira arte, sois nossos amigos!" (Enchiridion Vaticanum, 1, p. 305). E acrescentou: "Este mundo no qual vivemos precisa de beleza para não precipitar no desespero. A beleza, como a verdade, é o que infunde alegria no coração dos homens, é aquele fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e as faz comunicar na admiração. E isto graças às vossas mãos... Recordai-vos que sois os guardiães da beleza no mundo" (Ibid.).
Infelizmente, o momento actual está marcado não só por fenómenos negativos a nível social e económico, mas também por um esmorecimento da esperança, por uma certa desconfiança nas relações humanas, e por isso crescem os sinais de resignação, agressividade e desespero. Depois, o mundo no qual vivemos corre o risco de mudar o seu rosto devido à obra nem sempre sábia do homem o qual, em vez de cultivar a sua beleza, explora sem consciência os recursos do planeta para vantagem de poucos e não raramente desfigura as suas maravilhas naturais. O que pode voltar a dar entusiasmo e confiança, o que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o caminho, a elevar o olhar para o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua vocação, a não ser a beleza? Vós bem sabeis, queridos artistas, que a experiência do belo, do belo autêntico, não efémero nem superficial, não é algo acessório ou secundário na busca do sentido e da felicidade, porque esta experiência não afasta da realidade, mas, ao contrário, leva a um confronto cerrado com a vida quotidiana, para o libertar da obscuridade e o transfigurar, para o tornar luminoso, belo.
De facto, uma função essencial da verdadeira beleza, já evidenciada por Platão, consiste em comunicar ao homem um "sobressalto" saudável, que o faz sair de si mesmo, o arranca à resignação ao conformar-se com o quotidiano, fá-lo também sofrer, como uma seta que o fere, mas precisamente desta forma o "desperta" abrindo-lhe de novo os olhos do coração e da mente, pondo-lhe asas, elevando-o. A expressão de Dostoievsky que estou para citar é sem dúvida ousada e paradoxal, mas convida a reflectir: "A humanidade pode viver – diz ele – sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo. Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto". Faz-lhe eco o pintor Georges Braque: "A arte existe para perturbar, enquanto a ciência tranquiliza". A beleza chama a atenção, mas precisamente assim recorda ao homem o seu destino último, volta a pô-lo em marcha, enche-o de nova esperança, dá-lhe a coragem de viver até ao fim o dom único da existência. A busca da beleza da qual falo, evidentemente, não consiste em fuga alguma no irracional ou no mero esteticismo.
Mas, com muita frequência, a beleza propagada é ilusória e falsa, superficial e sedutora até ao aturdimento e, em vez de fazer sair os homens de si e de os abrir a horizontes de verdadeira liberdade atraindo-os para o alto, aprisiona-os em si mesmos e torna-os ainda mais escravos, privados de esperança e de alegria. Trata-se de uma beleza sedutora mas hipócrita, que desperta a cupidez, a vontade de poder, de posse, de prepotência sobre o outro e que se transforma, muito depressa, no seu contrário, assumindo o rosto do obsceno, da transgressão ou da provocação gratuita. Ao contrário, a autêntica beleza abre o coração humano à nostalgia, ao desejo profundo de conhecer, de amar, de ir para o Alto, para o Além de si. Se aceitamos que a beleza nos toque intimamente, nos fira, nos abra os olhos, então redescobrimos a alegria da visão, da capacidade de colher o sentido profundo do nosso existir, o Mistério do qual somos parte e do qual podemos haurir a plenitude, a felicidade, a paixão do compromisso quotidiano. João Paulo II, na Carta aos Artistas, cita, a este propósito, este verso de um poeta polaco, Cyprian Norwid: "A beleza serve para entusiasmar para o trabalho, / o trabalho serve para ressurgir" (n. 3). E mais adiante acrescenta: "Enquanto busca da beleza, fruto de uma imaginação que vai além do quotidiano, a arte é, por sua natureza, uma espécie de apelo ao Mistério. Enquanto perscruta as profundezas mais obscuras da alma ou os aspectos mais perturbadores do mal, o artista torna-se de certa forma voz da expectativa universal de redenção" (n. 10). E na conclusão afirma: "A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente" (n. 16).
Estas últimas expressões levam-nos a dar um passo em frente na nossa reflexão. A beleza que se manifesta na criação e na natureza e que se expressa através das criações artísticas, precisamente pela sua característica de abrir e alargar os horizontes da consciência humana, de remetê-la para além de si mesma, de aproximá-la ao abismo do Infinito, pode tornar-se um caminho para o Transcendente, para o Mistério último, para Deus. A arte, em todas as suas expressões, no momento em que se confronta com as grandes interrogações da existência, com os temas fundamentais dos quais deriva o sentido do viver, pode assumir um valor religioso e transformar-se num percurso de profunda reflexão interior e de espiritualidade. Esta afinidade, esta sintonia entre percurso de fé e itinerário artístico, confirma-a um número incalculável de obras de arte que têm como protagonistas as personagens, as histórias, os símbolos daquele imenso depósito de "figuras" – em sentido lato – que é a Bíblia, a Sagrada Escritura. As grandes narrações bíblicas, os temas, as imagens, as parábolas inspiraram numerosas obras-primas em todos os sectores das artes, assim como falaram ao coração de cada geração de crentes mediante as obras do artesanato e da arte local, não menos eloquentes e envolvedoras.
Fala-se, a este propósito, de uma via pulchritudinis, um caminho da beleza que constitui ao mesmo tempo um percurso artístico, estético, e um itinerário de fé, de busca teológica. O teólogo Hans Urs von Balthasar começa a sua grande obra intitulada Glória. Uma estética teológica com estas sugestivas expressões: "A nossa palavra inicial chama-se beleza. A beleza é a última palavra que o intelecto pensante pode ousar pronunciar, porque ela mais não faz do que coroar, como auréola de esplendor inapreensível, o dúplice astro do verdadeiro e do bem e a sua indissolúvel relação". Depois observa: "Ela é a beleza desinteressada sem a qual o velho mundo era incapaz de se entender, mas que se despediu em ponta de pés do mundo moderno dos interesses, para o abandonar à sua cupidez e à sua tristeza. Ela é a beleza que já não é amada e conservada nem sequer pela religião". E conclui: "Quem, em seu nome, enruga os lábios ao sorriso, julgando-a um objecto exótico de um passado burguês, dele se pode estar certo que – secreta ou abertamente – já não é capaz de rezar e, depressa, nem sequer de amar". Portanto, o caminho da beleza conduz-nos a colher o Tudo no fragmento, o Infinito no finito, Deus na história da humanidade. Simone Weil escreveu a este propósito: "Em tudo o que suscita em nós o sentimento puro e autêntico da beleza, há realmente a presença de Deus. Há quase uma espécie de encarnação de Deus no mundo, da qual a beleza é o sinal. A beleza é a prova experimental de que a encarnação é possível. Por isso qualquer arte de categoria é, por sua essência, religiosa". É ainda mais icástica a afirmação de Hermann Hesse: "Arte significa: dentro de tudo mostrar Deus". Fazendo eco às palavras do Papa Paulo VI, o Servo de Deus João Paulo II reafirmou o desejo da Igreja de renovar o diálogo e a colaboração com os artistas: "Para transmitir a mensagem que lhes foi confiada por Cristo, a Igreja precisa da arte" (Carta aos Artistas, n. 12); mas perguntava logo a seguir: "A arte precisa da Igreja?", solicitando assim os artistas a reencontrar na experiência religiosa, na revelação cristã e no "grande códice" que é a Bíblia uma fonte de inspiração renovada e motivada.
Queridos Artistas, encaminhando-me para a conclusão, gostaria de vos dirigir também eu, como já fez o meu Predecessor, um cordial, amistoso e apaixonado apelo. Vós sois guardiães da beleza; vós tendes, graças ao vosso talento, a possibilidade de falar ao coração da humanidade, de tocar a sensibilidade individual e colectiva, de suscitar sonhos e esperanças, de ampliar os horizontes do conhecimento e do empenho humano. Sede portanto gratos pelos dons recebidos e plenamente conscientes da grande responsabilidade de comunicar a beleza, de fazer comunicar na beleza e através da beleza! Sede também vós, através da vossa arte, anunciadores e testemunhas de esperança para a humanidade! E não tenhais medo de vos confrontar com a fonte primeira e última da beleza, de dialogar com os crentes, com quem, como vós, se sente peregrino no mundo e na história rumo à Beleza infinita! A fé nada tira ao vosso génio, à vossa arte, aliás exalta-os e alimenta-os, encoraja-os a cruzar o limiar e a contemplar com olhos fascinados e comovidos a meta última e definitiva, o sol sem ocaso que ilumina e torna belo o presente.
Santo Agostinho, cantor apaixonado da beleza, reflectindo sobre o destino último do homem e quase comentando ante litteram a cena do Juízo que hoje tendes diante dos vossos olhos, escrevia assim: "Gozaremos, portanto de uma visão, ó irmãos, jamais contemplada pelos olhos, jamais ouvida pelos ouvidos, jamais imaginada pela fantasia: uma visão que supera todas as belezas terrenas, do ouro, da prata, dos bosques e dos campos, do mar e do céu, do sol e da lua, das estrelas e dos anjos; a razão é esta: que ela é a fonte de qualquer outra beleza" (In Ep. Jo. Tr. 4, 5: PL 35, 2008). Desejo que todos vós, queridos Artistas, tenhais nos vossos olhos, nas vossas mãos, no vosso coração esta visão, para que vos dê alegria e inspire sempre as vossas belas obras. Ao abençoar-vos de coração, saúdo-vos, como já fez Paulo VI, com uma só expressão: até breve!
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