Quando escrevi pela primeira vez sobre o assunto na publicação Técnica Vocal: Princípios para
o Cantor Litúrgico, foi pensando em comunicar-me com os cantores litúrgicos de maneira a
sublinhar que o canto artístico e o canto litúrgico diferem em essência. Assim, foi só o começo de
uma longa busca. As fontes são muitas, como também são muitas as “espiritualidades”, aqui entre
aspas, porque até mesmo o significado de espiritual já se configura uma miscelânea de
compreensões. Exatamente nesse fazer, iniciamos nosso texto atual, ou seja, aclarando os conceitos,
limpando preconceitos e buscando unidade de sentido.
Espiritualidade fica aqui entendida à partir de sua origem spiritus e que significa respiração
quando relacionado a spirare e também significa a dimensão imaterial do ser humano, chamada de
alma. De maneira geral e simplificando, dizemos que quando a palavra leva no final dade, como
queremos falar de espiritualidade, tem aí uma ação envolvida, daí que espiritualidade é uma ação
ligada ao espiritual. Desenvolver a espiritualidade poderia então ser entendido como desenvolver
nossa capacidade de compreensão do espiritual, exercendo-a, pondo em ação essa dimensão
imaterial que também está ligada ao respirar, quando entendemos esse spirare como aquilo que
emana de nós através do material e traz consigo, nesse ciclo de manutenção da vida, contornos de
compreensão do imaterial. Agora, diante do exposto, podemos caminhar para a exposição daquilo
que pensamos sobre voz e que constitui a gênese de nossa proposição.
Aqui sublinhamos que a voz é essa existência que emana unidade, que possibilita o discurso,
que vivifica o significado e, que no século XVI os primeiros teólogos da linguagem chamaram de
verbo. O verbo como essa proclamação, como essa emanação que dignifica a palavra, verbo como
aquilo que cria e como aquilo que dá vida.
O verbo é então essa força vital, vapor do corpo, liquidez carnal e espiritual, no qual toda
atividade repousa, se espalha no mundo ao qual dá vida (Zumthor, 2010, p.66) e é essa atitude que
emanada em palavra constitui e materializa sentidos quando professa.
E como falar do canto? Para Zumthor, (2010, p. 295) o canto exalta a esperança de que um dia
uma palavra dirá tudo. Ele afirma que, emblematicamente, o canto realiza esse ato de dizer tudo.
Santo Agostinho nos auxilia confessando sua constante predileção pelas melodias. Diz que, por
vezes, uma melodia lhe chama mais a atenção que o texto e Santo Agostinho então, sente-se
culpado por ceder aos prazeres do ouvido quando dá menos atenção à palavra que à música. Para
não tomarmos uma pequena frase sem compreendermos seu contexto, por exemplo, sigamos a
compreender como era a transmissão de conhecimento naquele tempo, como se dava o aprendizado
e quais as qualidades necessárias para um boa leitura. Para isso, ele mesmo, Santo Agostinho dirá:
No Evangelho, Ele falou com voz humana, e a sua palavra repercutiu exteriormente
nos ouvidos dos homens a fim de que neles cressem, e o buscassem no íntimo, e o
encontrassem na verdade eterna, onde o bom e o único mestre ensina a todos os seus
discípulos. Aí, Senhor, ouço a tua voz a dizer-me que só nos fala verdadeiramente
aquele que nos ensina, enquanto aquele que não nos instrui, mesmo que nos fale, é
como se não nos falasse. (Livro XI - 10)
Naquele tempo, havia uma distinção primordial sobre o como se falava, não do ponto de vista
da técnica apenas mas, de como a voz em sua função plena se fazia verbo para dar-se em canto e
prenunciar, mais do que pronunciar, a palavra. Esse anúncio chegava aos ouvidos e, à partir deles,
da escuta, como hoje falamos, poderia-se então, refletir, sentir, aprender e apreender. Não era a palavra escrita que ensinava e sim, a palavra proferida, no influxo vocal humano que fazia conexão
com o outro e com os outros, ao mesmo tempo que aquele que dava sua voz à isso, entregava-se
para o serviço. Assim, podemos acrescentar: numa ação sacrificial. Era a exposição da vida, em seu
sentido mais profundo, através da oralidade.
Proferir é mais que dizer. Anunciar é mais que articular nossa materialidade do corpo para a
saída de uma voz que concatena sons que são ouvidos como palavra. Não é qualquer palavra que
deve ser entendida como Palavra. Quem garante essa passagem da palavra para a Palavra? Quem
profere, quem diz, quem canta, quem recita, quem salmodia, quem toca um instrumento e quem
escreve um texto.
Espiritualidade da voz então, é essa equilibrada noção de decorrência, de pertencimento, de
conexão do material com o imaterial que a voz transcorre, presentifica ao ouvido humano e que só é
possível no transcurso do tempo, na vida em comunidade, numa partilha da vida cristã que emana
da voz aos ouvidos e, como na patrística, dos ouvidos para o coração.
Com isso, o texto aqui apresentado é tão somente um primeiro subsídio para o trabalho em
comunidade. O assunto é profundo e nos convida a refletir para, a cada passo, guiar nossa
compreensão para uma ação efetiva.
Nesse sentido, o final se dá com sugestões para estudo.
O que estudar? O que observar durante o estudo?
Bílbia Sagrada - Livro: Gênesis - Capítulo 1 Como a voz aparece no texto? Qual a
relação entre voz e criação? Essa voz é interior
ou exterior? É proferida?
Bíblia Sagrada - Livro: Salmos Qual a função da voz descrita nos salmos?
Qual a importância do dizer? De quais vozes os
salmos falam?
Documentos da Igreja Constituição
Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada
Liturgia - Proêmio e Capítulo I - I. A Natureza
da Sagrada Liturgia e sua Importância na Vida
da Igreja
Como a voz, a escritura, o dizer e a maneira de
se comunicar vem assinalada nesse trecho?
Coleção Liturgia e Música. Livro:Técnica
Vocal: Princípios para Cantores Litúrgicos -
Capítulo: A Espiritualidade da Voz - autora
Paula Molinari
O que você entende por indízivel? Busque nos
evangelhos exemplos de recursos metafóricos
que envolvam palavra, verbo, anúncio, à partir
da explicação exposta no texto.
Referências Consultadas:
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus. 2002.
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. Paulus, 2010.
DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos sobre a Música Litúrgica. Volume 11. São Paulo: Paulus. 2005.
MOLINARI, Paula. Conhecer e Expressar o Indizível – O legado de Alfred Wolfsohn. Campo Limpo Paulista: FACCAMP, 2008.
__________, Paula. Técnica Vocal: Princípios para Cantores Litúrgicos. Coleção Liturgia e Música. São Paulo: Paulus, 2007.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
__________, Paul. A Letra e a Voz - A “literatura” medieval. São Paulo:Companhia das Letras, 2001.
fonte: CNBB
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