sábado, 6 de setembro de 2014

A Espiritualidade da Voz - Prof. Dra. Paula Molinari



Quando escrevi pela primeira vez sobre o assunto na publicação Técnica Vocal: Princípios para

o Cantor Litúrgico, foi pensando em comunicar-me com os cantores litúrgicos de maneira a

sublinhar que o canto artístico e o canto litúrgico diferem em essência. Assim, foi só o começo de

uma longa busca. As fontes são muitas, como também são muitas as “espiritualidades”, aqui entre

aspas, porque até mesmo o significado de espiritual já se configura uma miscelânea de

compreensões. Exatamente nesse fazer, iniciamos nosso texto atual, ou seja, aclarando os conceitos,

limpando preconceitos e buscando unidade de sentido. 



Espiritualidade fica aqui entendida à partir de sua origem spiritus e que significa respiração

quando relacionado a spirare e também significa a dimensão imaterial do ser humano, chamada de

alma. De maneira geral e simplificando, dizemos que quando a palavra leva no final dade, como

queremos falar de espiritualidade, tem aí uma ação envolvida, daí que espiritualidade é uma ação

ligada ao espiritual. Desenvolver a espiritualidade poderia então ser entendido como desenvolver

nossa capacidade de compreensão do espiritual, exercendo-a, pondo em ação essa dimensão

imaterial que também está ligada ao respirar, quando entendemos esse spirare como aquilo que

emana de nós através do material e traz consigo, nesse ciclo de manutenção da vida, contornos de

compreensão do imaterial. Agora, diante do exposto, podemos caminhar para a exposição daquilo

que pensamos sobre voz e que constitui a gênese de nossa proposição. 



Aqui sublinhamos que a voz é essa existência que emana unidade, que possibilita o discurso,

que vivifica o significado e, que no século XVI os primeiros teólogos da linguagem chamaram de

verbo. O verbo como essa proclamação, como essa emanação que dignifica a palavra, verbo como

aquilo que cria e como aquilo que dá vida. 



O verbo é então essa força vital, vapor do corpo, liquidez carnal e espiritual, no qual toda

atividade repousa, se espalha no mundo ao qual dá vida (Zumthor, 2010, p.66) e é essa atitude que

emanada em palavra constitui e materializa sentidos quando professa. 



E como falar do canto? Para Zumthor, (2010, p. 295) o canto exalta a esperança de que um dia

uma palavra dirá tudo. Ele afirma que, emblematicamente, o canto realiza esse ato de dizer tudo.

Santo Agostinho nos auxilia confessando sua constante predileção pelas melodias. Diz que, por

vezes, uma melodia lhe chama mais a atenção que o texto e Santo Agostinho então, sente-se

culpado por ceder aos prazeres do ouvido quando dá menos atenção à palavra que à música. Para

não tomarmos uma pequena frase sem compreendermos seu contexto, por exemplo, sigamos a

compreender como era a transmissão de conhecimento naquele tempo, como se dava o aprendizado

e quais as qualidades necessárias para um boa leitura. Para isso, ele mesmo, Santo Agostinho dirá: 



No Evangelho, Ele falou com voz humana, e a sua palavra repercutiu exteriormente

nos ouvidos dos homens a fim de que neles cressem, e o buscassem no íntimo, e o

encontrassem na verdade eterna, onde o bom e o único mestre ensina a todos os seus

discípulos. Aí, Senhor, ouço a tua voz a dizer-me que só nos fala verdadeiramente

aquele que nos ensina, enquanto aquele que não nos instrui, mesmo que nos fale, é

como se não nos falasse. (Livro XI - 10) 



Naquele tempo, havia uma distinção primordial sobre o como se falava, não do ponto de vista

da técnica apenas mas, de como a voz em sua função plena se fazia verbo para dar-se em canto e

prenunciar, mais do que pronunciar, a palavra. Esse anúncio chegava aos ouvidos e, à partir deles,

da escuta, como hoje falamos, poderia-se então, refletir, sentir, aprender e apreender. Não era a palavra escrita que ensinava e sim, a palavra proferida, no influxo vocal humano que fazia conexão

com o outro e com os outros, ao mesmo tempo que aquele que dava sua voz à isso, entregava-se

para o serviço. Assim, podemos acrescentar: numa ação sacrificial. Era a exposição da vida, em seu

sentido mais profundo, através da oralidade. 



Proferir é mais que dizer. Anunciar é mais que articular nossa materialidade do corpo para a

saída de uma voz que concatena sons que são ouvidos como palavra. Não é qualquer palavra que

deve ser entendida como Palavra. Quem garante essa passagem da palavra para a Palavra? Quem

profere, quem diz, quem canta, quem recita, quem salmodia, quem toca um instrumento e quem

escreve um texto. 



Espiritualidade da voz então, é essa equilibrada noção de decorrência, de pertencimento, de

conexão do material com o imaterial que a voz transcorre, presentifica ao ouvido humano e que só é

possível no transcurso do tempo, na vida em comunidade, numa partilha da vida cristã que emana

da voz aos ouvidos e, como na patrística, dos ouvidos para o coração. 




Com isso, o texto aqui apresentado é tão somente um primeiro subsídio para o trabalho em

comunidade. O assunto é profundo e nos convida a refletir para, a cada passo, guiar nossa

compreensão para uma ação efetiva. 



Nesse sentido, o final se dá com sugestões para estudo. 



O que estudar? O que observar durante o estudo?

Bílbia Sagrada - Livro: Gênesis - Capítulo 1 Como a voz aparece no texto? Qual a

relação entre voz e criação? Essa voz é interior

ou exterior? É proferida?

Bíblia Sagrada - Livro: Salmos Qual a função da voz descrita nos salmos?

Qual a importância do dizer? De quais vozes os

salmos falam?

Documentos da Igreja Constituição

Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada

Liturgia - Proêmio e Capítulo I - I. A Natureza

da Sagrada Liturgia e sua Importância na Vida

da Igreja

Como a voz, a escritura, o dizer e a maneira de

se comunicar vem assinalada nesse trecho?

Coleção Liturgia e Música. Livro:Técnica

Vocal: Princípios para Cantores Litúrgicos -

Capítulo: A Espiritualidade da Voz - autora

Paula Molinari

O que você entende por indízivel? Busque nos

evangelhos exemplos de recursos metafóricos

que envolvam palavra, verbo, anúncio, à partir

da explicação exposta no texto. 





Referências Consultadas:

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus. 2002.

BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. Paulus, 2010.

DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos sobre a Música Litúrgica. Volume 11. São Paulo: Paulus. 2005.

MOLINARI, Paula. Conhecer e Expressar o Indizível – O legado de Alfred Wolfsohn. Campo Limpo Paulista: FACCAMP, 2008.

__________, Paula. Técnica Vocal: Princípios para Cantores Litúrgicos. Coleção Liturgia e Música. São Paulo: Paulus, 2007.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

__________, Paul. A Letra e a Voz - A “literatura” medieval. São Paulo:Companhia das Letras, 2001.




fonte: CNBB

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