sexta-feira, 12 de setembro de 2014

São João Paulo II; Michelângelo e a Teologia do Corpo




CELEBRAÇÃO DA EUCARISTIA POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO
DO RESTAURO DOS AFRESCOS DE MIGUEL ÂNGELO NA CAPELA SISTINA

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Sexta-feira, 8 de Abril de 1994



1. « Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis ».

Entramos hoje na Capela Sistina para admirar os seus afrescos maravilhosamente restaurados. São obras dos maiores mestres do Renascimento: de Miguel Ângelo sobretudo, mas depois também do Perugino, de Botticelli, de Ghirlandaio, de Pinturicchio e de outros. Na conclusão destas delicadas intervenções de restauração, desejo agradecer a todos Vós aqui presentes, e de modo particular àqueles que, de vários modos, deram o seu contributo para este nobre empreendimento. Trata-se de um bem cultural de valor inestimável, de um bem que tem carácter universal. Disto dão testemunho os inúmeros peregrinos que, provindos de todas as nações do mundo, visitam este lugar para admirar a obra de sumos mestres e reconhecer nesta Capela uma espécie de admirável síntese da arte pictórica.

Apaixonados cultores do belo deram, depois, prova da sua sensibilidade, com o concreto e considerável contributo posto à disposição, para restituir à Capela o seu original vigor de cores. Pôde-se, além disso, contar com a obra de especialistas particularmente versados na arte da restauração, que efectuaram as suas intervenções valendo-se das tecnologias mais avançadas e seguras. A Santa Sé exprime a todos o seu cordial agradecimento pelo esplêndido resultado obtido.

2. Os afrescos que aqui contemplamos, introduzem-nos no mundo dos conteúdos da Revelação. As verdades da nossa fé falam-nos aqui de todas as partes. Dela o génio humano tirou a sua inspiração, empenhando-se em revesti-La de formas de inigualável beleza. Eis porque sobretudo o Juízo Universal suscita em nós o vivo desejo de professar a nossa fé em Deus, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E, ao mesmo tempo, estimula-nos a reafirmara nossa adesão a Cristo ressuscitado, que virá no último dia como supremo juiz dos vivos e dos mortos. Diante desta obra prima nós confessamos Cristo, Rei dos séculos, cujo Reino não terá fim.

Precisamente este Filho eterno, a quem o Pai confiou a causa da redenção humana, fala-nos na dramática cena do Juízo Universal. Estamos diante de um Cristo extraordinário. Ele possui em Si uma beleza antiga, que num certo sentido se distancia das representações pictóricas tradicionais. Do grande afresco Ele nos revela, antes de tudo, o mistério da sua glória ligado à ressurreição. Estarmos reunidos aqui, durante a Oitava da Páscoa, deve ser considerado circunstância mais do que nunca propícia. Antes tudo, estamos diante da glória da humanidade de Cristo. Ele, de facto, há-de vir na sua humanidade para julgar os vivos e os mortos, penetrando as profundezas das consciências humanas e revelando o poder da sua redenção. Por esta razão, ao lado d'Ele encontramos a Mãe, a « Alma socia Redemptoris ». Cristo na história da humanidade é a verdadeira pedra angular, da qual o Salmista diz « A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se pedra angular» (SL 117/198, 22). Esta pedra, então, não pode ser rejeitada. Único Mediador entre Deus e os homens, Cristo, da Capela Sistina, exprime em Si mesmo o inteiro mistério da visibilidade do Invisível.

3. Estamos assim no centro da questão teológica. O Antigo Testamento excluía qualquer imagem ou representação do Criador invisível. Esta, com efeito, era a ordem que Moisés tinha recebido de Deus, no monte Sinai (cf. Êx 20, 4), porque havia o perigo de o povo, inclinado à idolatria, se deter no seu culto a uma imagem de Deus que é inimaginável, porque acima de qualquer imaginação e entendimento do homem. O Antigo Testamento permanece fiel a esta tradição, não admitindo nenhuma representação do Deus Vivo nem nas casas de oração, nem no Templo de Jerusalém. A uma semelhante tradição aderem os membros da religião muçulmana, que crêem num Deus invisível, omnipotente e misericordioso, Criador e Juiz de todas as criaturas.

Mas Deus mesmo vem ao encontro das exigências do homem, o qual traz no coração o desejo ardente de O poder ver. Não acolheu porventura Abraão o mesmo Deus invisível, na admirável visita de três misteriosas Personagens? « Tres vidit et Unum adoravit » (cf. Gn 18, 1-14). Diante daquelas três Pessoas Abraão, o pai da nossa fé, experimentou de modo profundo a presença d'Aquele que é Só e único. Este encontro tornar-se-á o tema do incomparável ícone de Andrei Rublev, ápice da pintura russa. Rublev foi um daqueles santos artistas, cuja criatividade era fruto de contemplação profunda, de oração e jejum. Através da sua obra se exprimia a gratidão da alma ao Deus invisível, que concede ao homem representá-l'O de modo visível.

4. Tudo isto foi acolhido pelo Segundo Concílio de Niceia, o último da Igreja indivisa, que rejeitou de modo definitivo a posição dos iconoclastas, confirmando a legitimidade do costume de exprimir a fé mediante representações artísticas. O ícone não é então apenas obra de arte pictórica. Ele é, num certo sentido, como que um sacramento da vida cristã, porque nele se faz presente o mistério da Encarnação. Nele se reflecte, de modo sempre novo, o Mistério do Verbo feito carne, e o homem - autor e, ao mesmo tempo, partícipe - alegra-se com a visibilidade do Invisível.

Porventura não foi Cristo mesmo que pôs as bases dessa alegria espiritual? « Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta » - pediu Filipe no cenáculo, na vigília da paixão de Cristo. E Jesus: « Estou há tanto tempo convosco e não Me conheces, Filipe? Quem Me vê, vê o Pai... Não crês que Eu estou no Pai e que o Pai está em Mim? » (Jo 14, 8-10). Cristo é a visibilidade do Deus invisível. Por meio d'Ele, o Pai penetra a criação inteira e o Deus invisível torna-se presente entre nós e comunica-se connosco, tal como as três personagens, de que fala a Bíblia, se sentaram à mesa e comeram com Abraão.

5. Porventura, também Miguel Ângelo não tirou precisas conclusões das palavras de Cristo « Quem Me vê, vê o Pai »? Ele teve a coragem de admirar, com os próprios olhos, este Pai no momento em que profere o « fiat » criador e chama à existência o primeiro homem. Adão foi criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Enquanto o Verbo eterno é o ícone invisível do Pai, o homem-Adão é o seu ícone visível. Miguel Ângelo esforça-se de todos os modos por dar de novo a esta visibilidade de Adão, à sua corporeidade, os traços da antiga beleza. Antes, com grande audácia, transfere essa beleza visível e corpórea ao próprio Criador invisível. Estamos provavelmente diante de uma invulgar ousadia da arte, porque ao Deus invisível não se pode impor a visibilidade própria do homem. Não seria uma blasfémia? É difícil, porém, deixar de reconhecer no Criador visível e humanizado o Deus revestido de majestade infinita. Antes, por tudo aquilo que a imagem com os seus limites intrínsecos consente, aqui se disse tudo o que era possível dizer. Tanto a majestade do Criador como a do juiz falam da grandeza divina: palavra comovedora e unívoca, tal como, de outro modo, comovedora e unívoca é a « Pietà » na Basílica Vaticana, e de igual modo o Moisés na Basílica de S. Pedro in Vincoli.

6. Na expressão humana dos mistérios divinos não é talvez necessária a « kenosis », como consumação daquilo que é corporal e visível? Essa consumação entrou fortemente na tradição dos ícones cristão orientais. O corpo é certamente a « kenosis » de Deus. Lemos, com efeito, em São Paulo que Cristo « se despojou a Si mesmo tomando a condição de servo » (Fil 2, 7). Se é verdade que o corpo representa a « kenosis » de Deus e que, na representação artística dos mistérios divinos, se deve exprimir a grande humildade do corpo, a fim de que aquilo que é divino se possa manifestar, é também verdade que Deus é a fonte da beleza integral do corpo.

Parece que Miguel Ângelo, a seu modo, se tenha deixado guiar pelas sugestivas palavras do Livro do Génesis que, a respeito da criação do homem, varão e mulher, observa: « Estavam ambos nus, mas não sentiam vergonha » (Gn 2, 25). A Capela Sistina é precisamente - se assim se pode dizer - o santuário da teologia do corpo humano. Ao dar testemunho da beleza do homem criado por Deus, como homem e mulher, ela exprime também, de certo modo, a esperança de um mundo transfigurado, o mundo inaugurado por Cristo ressuscitado, e antes ainda por Cristo do monte Tabor. Sabemos que a Transfiguração constitui uma das principais fontes da devoção oriental; ela é um livro eloquente para os místicos, tal como um livro aberto foi para São Francisco o Cristo crucificado, contemplado no monte da Verna.

Se diante do Juízo Universal permanecemos ofuscados pelo es­plendor e pelo assombro, admirando por um lado os corpos glorificados e, por outro, os corpos submetidos à condenação eterna, compreendemos também que a inteira visão está profundamente impregnada de uma única luz e de uma única lógica artística: a luz e a lógica da fé, que a Igreja proclama confessando: « Creio em um só Deus... Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis ». Com base nessa lógica, no âmbito da luz que provém de Deus, também o corpo humano conserva o seu esplendor e a sua dignidade. Se o desprendemos dessa dimensão, ele torna-se de certo modo um objecto, que muito facilmente é aviltado, porque só diante dos olhos de Deus o corpo humano pode permanecer nu e descoberto e conservar intacto o seu esplendor e a sua beleza.

7. A Capela Sistina é o lugar que, para todos os Papas, conserva a recordação de um dia particular da sua vida. Para mim, trata-se do dia 16 de Outubro de 1978. Precisamente aqui, neste espaço sagrado, se reúnem os Cardeais, aguardando a manifestação da vontade de Cristo a respeito da pessoa do Sucessor de São Pedro. Aqui eu ouvi, dos lábios do meu Reitor de outrora, Maximilien de Furstenberg, as significativas palavras: «Magister adest et vocat te ». Neste lugar o Cardeal Primaz da Polónia, Stefan Wyszynski, disse-me: « Se te elegerem, peço-te que não recuses ». E aqui, em espírito de obediência a Cristo e entregando-me à sua Mãe, aceitei a eleição que surgiu do Conclave, declarando ao Cardeal Camerlengo, Jean Villot, a minha disponibilidade a servir a Igreja. Assim, pois, a Capela Sistina mais uma vez se tornou, diante de toda a Comunidade católica, o lugar da acção do Espírito Santo, que constitui na Igreja os Bispos, constitui de modo particular aquele que deve ser o Bispo de Roma e o Sucessor de Pedro.

Ao celebrar hoje o sacrifício da Santa Missa na mesma Capela, no décimo sexto ano do meu serviço à Sé Apostólica, peço ao Espírito do Senhor que não cesse de estar presente e operante na Igreja. Peço-Lhe que a introduza felizmente no terceiro milénio.

Invoco a Cristo, Senhor da história, para que esteja com todos nós até ao fim do mundo, como Ele mesmo prometeu: « Ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad consumationem saeculi » (Mt 28, 20).




fonte: Museu de Arte Sacra de São Paulo, Café Filosófico com Prof. Giovanni Bagnoli 10/09/14
          Vaticano

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